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INTRODUÇÃO: AS MUITAS FILOSOFIAS DA ÍNDIA

Não existe uma única filosofia, mas sim muitas filosofias diferentes, na Índia. Elas não são simples complementos umas das outras e sim constituem abordagens que se opõem e criticam.  Portanto, não se deve dizer “a filosofia indiana”, como se fosse uma coisa única e coerente. 

A palavra sânscrita mais utilizada para representar “filosofia” é darśana, que significa um ponto de vista, uma visão. Outros termos são utilizados algumas vezes: ānvīkṣikī, que significa mais especificamente conhecimento lógico; vidyā, que é um termo amplo, abrangendo qualquer tipo de conhecimento; tarkavidyā, que é o conhecimento associado ao raciocínio (tarka). 

As filosofias indianas abrangem diversos campos, como teoria do conhecimento, metafísica, ética, estética, antropologia filosófica e outros. Elas podem conter uma teoria social, uma filosofia da educação e muitos outros aspectos. Os pontos que são mais ressaltados nos estudos sobre filosofias indianas, em geral, são os que se referem à metafísica e ética – e são os que serão abordados aqui. 

Muitas das filosofias indianas (mas não todas) possuem uma relação íntima com religião. Quase todas abordam a importância de atingir a libertação espiritual e, por isso, também tratam sobre meios para obter isso – como os diversos tipos de Yoga e práticas religiosas. As separações didáticas que costumam ser estabelecidas entre filosofia propriamente dita (no sentido ocidental) e busca de transcendência, atrapalham – em vez de ajudar – a compreensão do pensamento indiano. 

As filosofias indianas costumam ser divididas em dois grupos, conforme aceitem ou não a autoridade dos Vedas. As que aceitam são consideradas ortodoxas, aceitas pelo Hinduísmo, e chamadas āstika – uma palavra que significa acreditar na existência (daquilo que é ensinado nos Vedas e nas Upaniṣads). Dentro da tradição ortodoxa, pode-se discutir a interpretação dos textos sagrados (śruti), mas não se pode questionar sua verdade. As que não aceitam essa autoridade são consideradas heterodoxas, não são aceitas pelo Hinduísmo, e chamadas nāstika – que significa não acreditar na existência (daquilo que é ensinado nos Vedas e nas Upaniṣads). 

Há seis escolas filosóficas āstika, que são: Mīmāṁsā, Vedānta, Nyāya, Vaiśeṣika, Sāṅkhya, Yoga. Esse conjunto é denominado ṣaḍdarśana (as seis visões). Aparentemente elas começaram a se desenvolver em torno do século VII a.C., porém as obras mais antigas dessas filosofias que foram conservadas são bem posteriores. 

Há muitas filosofias nāstika. Elas incluem o Budismo, o Jainismo, a filosofia materialista Cārvāka ou Lokāyata, e o Ājīvika, uma doutrina determinista (que nega o livre-arbítrio). Há várias outras, além dessas. Há filosofias desenvolvidas dentro das correntes tântricas, das quais algumas negam a veracidade dos Vedas, enquanto outras aceitam os Vedas, embora adicionem muitas doutrinas.

Algumas dessas escolas filosóficas possuem várias subdivisões. O Vedānta tem uma multiplicidade de interpretações, que vão desde um extremo monismo até um total dualismo. Existe um tipo de Sāṅkhya ateu e outro teísta. Não existe apenas um Budismo, mas muitos diferentes (tanto os que surgiram na Índia, quanto os que se desenvolveram fora dela). Existem também vários ramos do Tantra, com diferentes propostas filosóficas. 

No século XIV, Vidyāraṇya escreveu uma obra intitulada Sarvadarśanasaṅgraha (“compêndio de todas as filosofias”) na qual apresentou dezesseis sistemas diferentes: (1) Cārvāka (materialista); (2) Bauddha (Budismo); (3) Ārhata (Jainismo); (4) Viśiṣṭādvaita Vedānta de Rāmānuja; (5) Pūrṇa-prajña, ou Dvaita Vedānta de Madhvācārya; (6) Pāśupata, a corrente Śaiva criada por Nakulīśa; (7) Śaiva Siddhānta (8) Pratyabhijñā, ou teoria do reconhecimento; (9) Raseśvara, ou sistema alquímico; (10) Vaiśeṣika; (11) Akṣapāda ou Nyāya; (12) Mīmāṁsā de Jaimini; (13) teoria da linguagem de Pāṇini; (14) Sāṅkhya; (15) Pātañjala Yoga; (16) Advaita Vedānta de Śaṅkara. 

É claro que a obra Sarvadarśanasaṅgraha não é exaustiva; existiram outras correntes filosóficas além das que Vidyāraṇya descreveu. Ele selecionou as que considerou mais significativas, na época em que escreveu sua obra (século XIV). Também não é possível expor aqui todas as filosofias indianas; será apresentada apenas uma amostra delas. 

 

VEDAS E UPANIṢADS

A tradição indiana distingue dois grandes grupos de obras antigas: as escrituras sagradas, denominadas “śruti” (aquilo que foi ouvido), que incluem os Vedas e as Upaniṣads; e os escritos dos antigos sábios, denominados “smṛti” (aquilo que é lembrado). O primeiro grupo é descrito como apauruṣeya, que significa não ter uma origem humana; essas obras são consideradas como portadoras de uma verdade que não pode ser questionada, no Hinduísmo. O segundo grupo é considerado como uma obra de seres humanos muito sábios; porém, eles poderiam se enganar e cometer erros, portanto esses escritos não são indubitáveis ou sagrados. 

Toda a literatura vêdica – e só ela – é considerada śruti. Essa literatura vêdica consiste em: os quatro Vedas, propriamente ditos (as compilações de hinos e outros textos, chamados saṁhitā); os Brāhmanas, que são antigos manuais utilizados pelos sacerdotes; os Āraṇyakas, ou escritos das florestas; e as Upaniṣads mais antigas, que são obras esotéricas, que só podiam ser transmitidas pelo mestre aos discípulos que haviam sido selecionados. 

A palavra “Veda” significa conhecimento – mais especificamente, o conhecimento sagrado. Há quatro ramos do Veda: o Ṛg-Veda, que é considerado o mais antigo, pode ter sido composto mais de 2.000 anos antes da era cristã. É constituído por mais de mil hinos associados aos devas e devīs. Esses hinos constituem principalmente louvores dos seres divinos ou pedidos feitos a eles. O Sāma-Veda é um outro ramo, que consiste praticamente em uma seleção de hinos do Ṛg-Veda (com poucas adições) que eram cantados de um modo especial e utilizados principalmente nos rituais solenes, que envolviam o uso da bebida sagrada, Soma. O Yajur-Veda é uma espécie de manual utilizado por um tipo de sacerdote antigo, o adhvaryu, que fazia todas as manipulações exigidas pelos rituais vêdicos. Existe uma versão do Yajur-Veda chamada Kṛṣṇa-Yajur-Veda (Yajur-Veda negro) que contém tanto a descrição das ações realizadas pelo adhvaryu quanto as fórmulas sagradas que ele pronuncia; e uma outra versão, o Śukla-Yajur-Veda (Yajur-Veda branco ou puro), que separa as fórmulas sagradas de sua explicação. O quarto ramo é o Atharva-Veda, que é considerado o mais recente. Ele contém hinos tirados do Ṛg-Veda e outros novos, além de um grande número de fórmulas de magia. As compilações do conteúdo de cada um desses ramos do Veda são chamadas “saṁhitā”. 

Nenhum dos Vedas pode ser considerado um tratado filosófico. No entanto, há uma visão filosófica implícita neles e, em certos pontos, uma explicação mais clara de vários pressupostos filosóficos adotados na época. 

Os Brāhmaṇas e os Āraṇyakas contêm explicações sobre os hinos e preces, apresentam alguns aspectos da mitologia dos Vedas, descrevem os rituais antigos e contêm uma elaboração mais clara de alguns pontos filosóficos apontados nos Vedas. 

As Upaniṣads mais antigas são obras que começaram a ser elaboradas ao mesmo tempo que os Brāhmaṇas e os Āraṇyakas (algumas delas fazem parte desses textos) e depois começaram a ser elaboradas separadamente, sendo porém vinculadas aos vários ramos dos Vedas. As Upaniṣads falam pouco sobre rituais e sobre o conteúdo dos hinos dos Vedas. Abordam principalmente questões filosóficas, que são às vezes expostas sob a forma de diálogos entre vários tipos de personagens. As Upaniṣads contêm o detalhamento de alguns dos mais importantes temas do pensamento indiano: o karman, o renascimento, a libertação da roda de renascimentos, a natureza mais interna do ser humano (ātman), o Ser Absoluto (Brahman), cosmologia, os processos de evolução e libertação espiritual. 

As Upaniṣads mais antigas parecem ter sido escritas entre os séculos X e VIII a.C. Nos séculos seguintes, continuaram a ser compostas outras Upaniṣads e, em algumas delas, já se percebe uma influência exercida pelo Budismo e pelo Jainismo (que surgiram no século VI a.C.). Há um número relativamente pequeno de Upaniṣads que foram compostas antes do início da era cristã (aproximadamente 10), mas depois continuaram a ser escritos textos que também foram intitulados “upaniṣads”, embora não tivessem mais o mesmo status dos antigos. Costuma-se afirmar que existem 108 Upaniṣads, mas o número é muito maior – certamente mais de 200. O número 108 é apresentado em uma das próprias Upaniṣads, chamada Muktikā, que apresenta uma lista dessas 108 obras – incluindo a si mesma. Em períodos mais recentes, atribuir a um texto o título de “upaniṣad” significa apenas que se queria atribuir a ele uma autoridade de śruti – o que é uma estratégia não muito louvável.

Obras posteriores, como o Mahābhārata – dentro do qual encontramos a Bhagavad-Gītā – já não são classificadas como sagradas e indubitáveis. Porém, a Bhagavad-Gītā é considerada por muitos autores como tendo o mesmo nível de autoridade que os Vedas ou Upaniṣads. 

 

OS SEIS SISTEMAS OU VISÕES

Há seis escolas filosóficas ortodoxas ou āstika, que são: Mīmāṁsā, Vedānta, Nyāya, Vaiśeṣika, Sāṅkhya, Yoga. Esse conjunto é denominado ṣaḍdarśana (as seis visões). Aparentemente elas começaram a se desenvolver em torno do século VII a.C., porém as suas obras mais antigas que foram conservadas são bem posteriores. Todas as seis aceitam a tradição dos Vedas e das Upaniṣads. Elas são geralmente associadas em pares complementares.

Mīmāṁsā (“interpretação”), ou Pūrvamīmāṁsā (“interpretação antiga”) é uma escola filosófica (darśana) que realiza um comentário sistemático dos textos e rituais mais antigos da tradição vêdica. O texto mais antigo dessa escola que foi conservado é o Mīmāṃsā-Sūtra, escrito por Jaimini no século III a.C. – mas podem ter existido obras anteriores. A questão básica dessa escola é a compreensão das causas e consequências das ações humanas – especialmente as ações rituais. Para extrair dos Vedas as respostas a essas questões, a escola Mīmāṁsā utilizou técnicas de exegese que são explicadas e aplicadas. Há também uma teoria do conhecimento bastante sofisticada, desenvolvida dentro dessa escola. Ela não dá grande atenção às Upaniṣads, que considera como um complemento secundário dos Vedas. 

Vedānta é uma outra corrente filosófica ortodoxa que, ao contrário da Mīmāṁsā, dá grande atenção às Upaniṣads e concede pouca importância aos rituais e aos textos mais antigos. Essa filosofia é também chamada de Uttara Mīmāṁsā (“interpretação recente”) por privilegiar os textos compostos posteriormente aos Vedas. A palavra “vedānta” significa o final dos Vedas e não era, inicialmente, uma designação de uma escola filosófica e sim o nome dado a um conjunto de obras – Āraṇyakas e Upaniṣads – que apareciam como apêndices ou partes finais da literatura vêdica. A corrente filosófica Vedānta adotou esse nome por dar maior importância a essas obras. A obra mais antiga conhecida dessa escola filosófica é o Brahma-Sūtra (também chamado de Vedānta-Sūtra), escrito por Bādarāyaṇa no século V a.C. Porém, o próprio Bādarāyaṇa se referiu a outros mestres anteriores do Vedānta. O tema principal do Brahma-Sūtra é o conhecimento do Ser Absoluto, Brahman, de seu correspondente dentro do ser humano, o ātman, e do modo de atingir Brahman. O Brahma-Sūtra é bastante obscuro, por ser composto sob a forma de afirmações muito curtas. Autores posteriores proporcionaram interpretações conflitantes do Brahma-Sūtra, gerando diversas correntes mutuamente opostas, dentro do Vedānta. Desses intérpretes posteriores, o mais conhecido é Śaṅkara, que parece ter vivido no século VIII d.C. Ele é erroneamente apontado como o criador do Vedānta, apesar de ter nascido mais de mil anos após Bādarāyaṇa. 

Nyāya é uma escola filosófica que se dedica principalmente à lógica, à teoria do conhecimento e à análise da argumentação. A palavra “nyāya” significa a origem de uma coisa, ou a busca dessa origem; um método, regra, modelo ou sistema. Essa corrente filosófica defende que o sofrimento humano é o resultado de conhecimentos equivocados, que levam a ações errôneas. O sofrimento pode ser eliminado pelo conhecimento correto, que pode levar à libertação espiritual (mokṣa). Partindo dessa visão, a filosofia Nyāya analisa o conhecimento e o erro, incluindo as ilusões. O conhecimento correto permite atingir a verdadeira natureza do ser humano, do Eu e da realidade. A obra mais antiga conhecida sobre essa filosofia é o Nyāya-Sūtra escrito por Akṣapāda Gautama. Há muitas controvérsias sobre a época em que esse autor viveu – apenas se pode afirmar que o Nyāya-Sūtra foi composto entre os séculos VI a.C. e II d.C. 

Vaiśeṣika é uma filosofia atomística, considerada complementar ao Nyāya. Enquanto o Nyāya se ocupa principalmente com a lógica e a teoria do conhecimento, o Vaiśeṣika tem por tema principal o próprio conhecimento do universo. O nome Vaiśeṣika vem do termo sânscrito viśeṣa que significa distinção, separação. A doutrina Vaiśeṣika foi apresentada na obra Vaiśeṣika-Sūtra, escrita por Kaṇāda entre os séculos VI e II a.C. Segundo essa filosofia, existem nove tipos de ingredientes básicos (dravya) do universo: os cinco elementos grosseiros (terra, água, fogo, ar e éter), o tempo, o espaço, o Eu (ātman) e a mente (manas). Todos os objetos do universo podem ser decompostos em partículas indivisíveis, chamadas paramāṇu. De acordo com a filosofia Vaiśeṣika, a sabedoria e a libertação podem ser obtidas pela compreensão do mundo que captamos pelos nossos sentidos.

O Sāṅkhya talvez seja o mais antigo sistema filosófico desenvolvido no pensamento indiano. Ele surgiu certamente antes do século VI a.C., pois o Buddha histórico, Siddhārta Gautama, teve um mestre que ensinava essa doutrina. A palavra “sāṅkhya” significa número, contagem, enumeração. Essa corrente filosófica parece ter adquirido esse nome porque ela classifica e enumera os princípios básicos da realidade. A tradição atribui a criação do Sāṅkhya ao sábio Kapila, que talvez tenha vivido no século VII a.C. Ele teria escrito uma obra chamada Sāṅkhya-Sūtra, que não foi conservada. Existe um texto com esse nome que é conhecido, porém parece ser muito mais recente. O mais antigo tratado sobre Sāṅkhya que foi preservado se chama Sāṅkhya-Kārikā, escrito por Īśvarakṛṣṇa em torno de 400 d.C. Há, no entanto, longas descrições sobre o Sāṅkhya no Mahābhārata – especialmente na Bhagavad-Gītā e no Mokṣadharma. Segundo o Sāṅkhya, os dois componentes fundamentais da realidade são Puruṣa (a essência do ser humano, que é sua consciência) e Prakṛti (a produtora, a Natureza, que gera todos os seres do universo). Puruṣa é inativo, tem a natureza de uma testemunha ou observador. Prakṛti é o poder feminino ativo, gerador. A versão dessa filosofia apresentada na Sāṅkhya-Kārikā de Īśvarakṛṣṇa não inclui Brahman (o Ser Absoluto) entre os componentes da realidade, nem se refere ao governante do universo, Īśvara. Por isso, costuma-se dizer que o Sāṅkhya é ateu. No entanto, o Sāṅkhya exposto no Mahābhārata (que é anterior à Sāṅkhya-Kārikā) menciona tanto Brahman quanto Īśvara. Há, portanto, diferentes versões do Sāṅkhya.

O Yoga tradicional é considerado como um complemento do Sāṅkhya, no sentido de que este apresenta uma teoria sobre a realidade e sobre a natureza da libertação espiritual, enquanto que o Yoga indica práticas para atingir esse resultado. O Mahābhārata indica, em vários pontos, a correlação íntima entre Yoga e Sāṅkhya. O tipo de Yoga indiano antigo que está fortemente associado ao Sāṅkhya é o Yoga de Patañjali, exposto na obra Yoga-Sūtra, que faz uso dos conceitos fundamentais de Puruṣa e Prakṛti, dos poderes da natureza (guṇas), da estrutura do ser humano exposta pelo Sāṅkhya, etc. Outras modalidades, como o Haṭha-Yoga, desenvolvido no século X ou XI d.C., não se baseiam no Sāṅkhya. Há muitas dúvidas sobre Patañjali, mas ele parece ter vivido entre os séculos III a.C. e III d.C. O Yoga-Sūtra de Patañjali menciona várias vezes Īśvara, o soberano do universo; é evidente, portanto, que ele não se baseou no tipo de Sāṅkhya exposto na obra Sāṅkhya-Kārikā. 

Vamos apresentar a seguir um pouco mais de informações sobre o Sāṅkhya, o Yoga e os vários ramos do Vedānta. Depois, abordaremos algumas das filosofias não-ortodoxas.

Introdução
Vedas
Os seis sistemas

SĀṄKHYA

O Sāṅkhya contém uma teoria sobre todas as coisas que existem no Universo, desde a matéria grosseira até a essência do ser humano. Os dois conceitos fundamentais do Sāṅkhya são Puruṣa e Prakṛti. Puruṣa é uma consciência pura, um expectador, observador ou testemunha; Prakṛti, a Natureza, é a produtora de tudo, ela é dinâmica e inconsciente.

Segundo o Sāṅkhya, o ser humano vivo (jīva) tem uma estrutura que podemos comparar a um robô ou androide, uma máquina muito bem construída, que funciona graças aos poderes de Prakṛti. Dentro dessa estrutura existe uma luz, uma consciência, que é algo totalmente diferente do corpo e da mente: Puruṣa.

O universo externo e todos os envoltórios de Puruṣa fazem parte de Prakṛti, a natureza. A palavra Prakṛti significa “produtora”; ela é o poder ativo que gera tudo o que existe no universo – exceto Puruṣa, que é eterno e não foi produzido por nada.

Tanto Puruṣa quanto Prakṛti são eternos (não foram criados e não possuem um fim). Puruṣa, além de eterno, é inativo, não se transforma, não age. Pelo contrário, Prakṛti é ativa e se transforma sempre, todas as ações são produzidas por ela. A única coisa imutável no universo é Puruṣa. Tudo o que é mutável faz parte de Prakṛti. 

Prakṛti pode ser pensada como a base primordial de todo o universo; ou como o conjunto de seres mutáveis do universo. Essa base primordial de onde tudo se originou é chamada de pradhāna, ou mūla-prakṛti.

Prakṛti é, essencialmente, um dinamismo constituído por três poderes (guṇas) que produzem tudo e que estão em todas as coisas do universo. De acordo com o Sāṅkhya, o mundo externo e o mundo interno (tudo o que foi produzido por Prakṛti) são gerados e movidos por três poderes fundamentais (guṇas): tamas, rajas e sattva. 

A palavra guṇa significa um cordão. Os três guṇas podem ser imaginados como três fios de cores diferentes, entrelaçados, formando um cordão que atravessa todos os seres do universo: tamas (negro), rajas (vermelho) e sattva (branco).

  • Tamas significa trevas ou escuridão. É o poder natural que produz peso, ignorância, ilusão, inércia, embotamento, estupidez, sofrimento. É representado pela cor negra.

  • Rajas significa impureza. É o poder da natureza associado à força, às paixões, emoções, desejos, à atividade, à pressa, à violência, ao egoísmo. É representado pela cor vermelha. 

  • Sattva significa realidade ou essência. É um poder natural associado à leveza, à luz, à pureza, à bondade, à sabedoria, aos aspectos espirituais do universo. É representado pela cor branca. 

Todos os seres da natureza possuem esses três poderes, mas geralmente um deles aparece em maior proporção. As pedras e outros objetos inanimados possuem principalmente a natureza de tamas; os animais, de rajas; os seres humanos e os devas, de sattva. A Bhagavad-Gītā tem três capítulos que tratam essa temática de modo detalhado, com muitos exemplos: capítulos 14, 16 e 17.

A Natureza Primordial (mūla-prakṛti), também chamada de pradhāna, é a origem de todo o universo, de tudo o que existe. Ela é invisível, porque ainda não possui qualidades, e nela existe um equilíbrio dos três poderes (guṇas). Quando esse equilíbrio é rompido, ocorre a produção de todos os seres. 

De acordo com o Sāṅkhya, o primeiro produto de Prakṛti é totalmente imaterial. Através dos três guṇas, ela produz o Grande Princípio (Mahat) e nele cria as individualidades (Ahaṁkāras), que são as sementes ou essências de todos os seres.

Os ahaṁkāras que formam a base de todos os seres do universo podem ser conhecidos através da Buddhi (o órgão da sabedoria), durante vivências obtidas em estado meditativo. Através da Buddhi, podemos entrar em contato com Mahat e contemplar as essências de todos os seres que constituem a realidade material e não-material. Buddhi é o nosso órgão mais interno, que estabelece o contato de Puruṣa com todas as outras “camadas” do ser humano. No Sāṅkhya, a Buddhi e Mahat têm a mesma natureza (são o mesmo tattva). 

Em torno de cada um dessas individualidades, Prakṛti vai produzindo órgãos, um corpo sutil e finalmente um corpo material (naqueles que são materiais). Há um progressivo aumento de tamas, e diminuição de sattva, em cada nível. 

Os instrumentos produzidos em torno de cada individualidade e que permitem seu contato com o mundo exterior são onze: cinco poderes sensoriais, cinco poderes de ação, e a mente (Manas). 

O Sāṅkhya descreve cinco “elementos sutis” (tanmātras) – som, toque, aparência, sabor, aroma – e cinco “elementos grosseiros” (mahābhūtas), associados aos cinco sentidos – éter, ar, fogo, água, terra. Essa teoria dos sentidos, dos elementos sutis e dos elementos grosseiros, originada no Sāṅkhya, é utilizada em praticamente todas as correntes filosóficas indianas. 

Segundo o Sāṅkhya, há três órgãos internos (antaḥkaraṇa): Buddhi (o órgão da sabedoria), Ahaṁkāra (individualidade) e Manas (mente). A mente (Manas) coordena os dez poderes de conhecimento e de ação. Buddhi é o órgão que permite o contato com as realidades imateriais (todas as individualidades cósmicas) e também é o órgão que serve de intermediário entre Puruṣa e a estrutura mental e física de cada indivíduo. Assim, o ser humano é constituído por muitas camadas. 

Esses são os 25 tattvas ou constituintes da realidade, segundo a Sāṅkhya-Kārikā. Tattva significa princípio, essência, elemento.

1. O ser humano essencial: Puruṣa, a consciência

2. A natureza primordial: Pradhāna ou Prakṛti

3. O órgão da sabedoria: Buddhi ou Mahat

4. A individualidade: Ahaṅkāra

Os cinco elementos sutis [Tanmātras]:

5. Som: Śabda 

6. Toque: Sparśa

7. Cor ou forma: Rūpa

8. Sabor: Rasa

9. Odor: Gandha

Os cinco sentidos [Jñānendriyas] e o órgão interno central

10. Audição: Śrotra

11. Tato: Sparśana

12. Visão: Cakṣus

13. Paladar: Rasana

14. Olfato: Ghrāṇa

15. A mente: Manas

Os cinco órgãos da ação [Karmendriyas]

16. Voz: Vāk

17. Mãos: Pāni

18. Pés: Pāda

19. Órgão de excreção: Pāyu

20. Órgão de reprodução: Upastha

Os cinco elementos grosseiros [Mahābhūtas]

21. Éter: Ākāśa

22. Ar: Vāyu

23. Fogo ou luz: Tejas

24. Água: Āpas

25. Terra: Pṛthivi

Observe que os três guṇas não são tattvas (eles fazem parte de Prakṛti) e que os 5 prāṇas não estão incluídos nesse esquema (são tipos de Vāyu).

O Sāṅkhya descreve o processo de libertação espiritual (mokṣa ou kaivalya), que é também o objetivo final de todos os tipos de Yoga indianos tradicionais. A libertação ocorre, segundo o Sāṅkhya, quando a Buddhi se volta para Puruṣa e consegue discriminá-lo de Prakṛti, e isso ocorre graças à própria Prakṛti. A consciência percebe sua própria pureza, e não fica mais envolvida com a Natureza.

Essa pessoa não é mais um indivíduo. Seu corpo, seus sentidos, sua memória, sua mente, sua buddhi e seu ahaṁkāra se dissolveram.  Ela não tem desejos, não tem sensações, não age. É pura consciência.  

A obra Sāṅkhya Kārikā não menciona nenhum ser divino supremo, nenhuma entidade espiritual que deva ser cultuada. Aceita seres espirituais, que incluem os devas (como Indra e Śiva), porém considerando que fazem parte do mundo natural. Em outras abordagens do Sāṅkhya, há um Soberano (Īśvara) – por exemplo: no Yoga de Patañjali. Há também abordagens do Sāṅkhya – como no Mahābhārata – em que se aceita a existência do Ser Absoluto, Brahman. 

 

YOGA

Quando se afirma que o Yoga é um dos seis sistemas ortodoxos do pensamento indiano, trata-se do Yoga de Patañjali, descrito na obra Yoga-Sūtra. Outras formas de Yoga, como Mantra-Yoga, Bhakti-Yoga, Haṭha-Yoga ou Laya-Yoga não estão incluídas aqui, embora cada uma delas tenha também uma base filosófica. 

O Yoga de Patañjali aceita e utiliza a conceituação do Sāṅkhya, porém acrescenta diversos componentes. O interesse principal desse Yoga é a transformação do praticante e sua libertação, através de um conjunto de práticas – principalmente as internas, ou seja, que não fazem uso de atividades corporais. Para apresentar esse caminho, Patañjali trata sobre as atividades mentais e descreve diversos tipos de estados alterados de consciência (samādhi); explica as técnicas de transformação; introduz normas de vida (ética) que não fazem parte do Sāṅkhya; aborda a questão das ações e de seus resíduos, indicando o papel do karman no aprisionamento das pessoas ao processo de renascimento e como ele pode ser superado, para atingir a libertação. 

O Yoga-Sūtra é dividido em quatro partes. A primeira, Samādhi Pāda, apresenta inicialmente o próprio conceito de Yoga adotado por Patañjali e depois trata sobre vários tipos de samādhi, as barreiras ou dificuldades de atingi-los e apoios que facilitam sua obtenção. O Yoga é apresentado como sendo o controle das atividades da mente, uma técnica fundamental porque, enquanto esse controle não é atingido, nós nos identificamos com os processos mentais (sentimentos, pensamentos etc.) e só quando a mente é controlada nós podemos ir além desses processos e voltar nossa atenção para o observador ou consciência (puruṣa, ātman). Atinge-se esse observador, de forma plena, em um estado alterado de consciência, a união ou samādhi, que pode ser de vários tipos. Em todos eles a mente está acalmada e controlada, mas o pensamento pode não ter sido abolido e, nesse caso, algumas atividades mentais acompanham o processo de samādhi. No samādhi mais profundo, no entanto, as vivências já não são mais acompanhadas pelo conhecimento proveniente da mente. O Yoga-Sūtra descreve detalhadamente todas essas modalidades. Note-se que o samādhi é um importante passo, mas não é o objetivo ou o fim da caminhada do yogin. 

A segunda seção da obra de Patañjali é intitulada Sādhana Pāda e trata sobre os métodos ou práticas do yogin. Uma parte muito importante é constituída pela apresentação dos oito membros (aṅgas) desse tipo de Yoga, que são: yama (cinco proibições), niyama (as obrigações), āsana (postura), prāṇāyāma (controle da respiração), pratyāhāra (retração dos sentidos), dhāraṇā (concentração), dhyāna (meditação) e samādhi (união). Os dois primeiros membros indicam a mudança do modo de vida que o yogin ou yoginī deve assumir. Patañjali apresentou cinco proibições (yamas), que são regras idênticas às que haviam sido adotadas no Janinismo, alguns séculos antes: ahiṁsā (não violência), satya (veracidade – não mentir, não enganar), asteya (não roubar), brahmacarya (não buscar prazeres), aparigraha (não se prender aos bens). Além dessas normas éticas, que refreiam as tendências violentas e egoístas, há cinco niyamas, que são obrigações positivas, destinadas a desenvolver o yogin ou a yoginī: śauca (pureza), santoṣa (contentamento), tapas (ascetismo), svādhyāya (estudo próprio), īśvara-praṇidhāna (culto do Soberano). Este último ponto mostra que existe um componente devocional e religioso no Yoga de Patañjali. O Yoga-Sūtra apresenta a importância de uma postura (āsana) firme e confortável para as práticas, sem indicar nomes de posturas nem dar qualquer outro detalhe técnico. O controle da respiração (prāṇāyāma) é apresentado como uma prática de controle da mente, auxiliando na obtenção da concentração. A retração dos sentidos (pratyāhāra) é desligar-se do domínio daquilo que vem através dos sentidos (manter indiferença emocional), sem deixar de ter as sensações, permitindo assim se libertar do apego, do desejo, das aversões e medos. 

A terceira seção do Yoga-Sūtra é chamada Vibhūti Pāda e seu tema central é o modo de obter poderes especiais. No seu princípio, são apresentados os três membros internos do Yoga de Patañjali – dhāraṇā (concentração), dhyāna (meditação) e samādhi (união) – e sua relação mútua. Quando se consegue dominar a atenção em uma única coisa, sem deixar que a mente vagueie, mantendo a concentração durante um certo tempo, surge estado meditativo (dhyāna). Nele a Buddhi está ativa e proporciona um acesso à sabedoria transcendente. A partir da meditação, o yogin ou yoginī pode passar para o estado de samādhi, em que desaparece a dualidade entre o conhecedor e o conhecido, havendo uma fusão ou união, sem dualidades. O conjunto ou sequência dessas três práticas é denominado samyama. É através da aplicação de samyama que o yogin ou a yoginī desenvolve sua transformação espiritual e é também por meio dele que podem ser obtidos poderes especiais (vibhūti ou siddhi), como levitar ou se tornar invisível. O Yoga-Sūtra explica sumariamente como obter uma série desses poderes, mas alerta que isso pode desviar o praticante de seu objetivo mais elevado (que é a libertação). 

Por fim, a quarta parte do Yoga-Sūtra, intitulada Kaivalya Pāda, trata sobre as ações e suas consequências (karman) e explica o processo de libertação (kaivalya ou mokṣa). As pessoas comuns realizam suas ações com intenções boas, más, ou misturadas; isso produz efeitos que prendem a pessoa ao mundo e produzem o renascimento. As ações de um yogin, no entanto, não são brancas nem negras (não possuem boas intenções nem más intenções). Ele age de um modo livre, não é controlado pelos três guṇas, pelos desejos, atrações e aversões. Essa ação sem desejos e sem expectativas é a essência do Karma-Yoga (exposto anteriormente na Bhagavad-Gītā) e está incluída no Yoga de Patañjali, embora não seja seu método central. 

Sankhya
Yoga

VEDĀNTA

A palavra “vedānta” significa o final dos Vedas e não era, inicialmente, uma designação de uma escola filosófica e sim o nome dado a um conjunto de obras – Āraṇyakas e Upaniṣads – que apareciam como apêndices ou partes finais da literatura vêdica. A corrente filosófica Vedānta adotou esse nome por dar maior importância a essas obras. A obra mais antiga conhecida dessa escola filosófica é o Brahma-Sūtra (também chamado de Vedānta-Sūtra), escrito por Bādarāyaṇa no século V a.C. Porém, o próprio Bādarāyaṇa se referiu a outros mestres anteriores do Vedānta. O tema principal do Brahma-Sūtra é o conhecimento do Ser Absoluto, Brahman, de seu correspondente dentro do ser humano, o ātman, e do modo de atingir Brahman. O Brahma-Sūtra é bastante obscuro, por ser composto sob a forma de afirmações muito curtas. Autores posteriores proporcionaram interpretações conflitantes do Brahma-Sūtra, gerando diversas correntes mutuamente opostas, dentro do Vedānta.

Os autores que se enquadram dentro da filosofia Vedānta tomam como fonte de seus ensinamentos as Upaniṣads antigas, o Brahma-Sūtra e a Bhagavad-Gītā. Porém, cada um deles extraiu essas obras uma interpretação própria. Todas essas interpretações são muito posteriores a Bādarāyaṇa, por isso nenhuma delas pode ser considerada como sendo uma continuação do seu pensamento original. 

As seis principais correntes do Vedānta são:

  • A defendida por Śaṅkara (século VII ou VIII d.C.), fundada na doutrina não dualística (advaita, ou devalādvaita);

  • A exposta por Rāmānuja (século XI), que se baseia no não-dualismo qualificado (viśiṣtādvaita);

  • A de Madhva (século XIII), que é uma doutrina dualística (dvaita);

  • A de Nimbārka (século XIV), que adota o dualismo-não-dualismo (dvaitādvaita);

  • A de Vallabha (século XV-XVI), que se baseia no monismo puro (śuddhādvaita);

  • A de Caitanya (século XVI), que se fundamenta na doutrina da diferença e não-diferença impensável ( acintya-bhedābheda).

Todas as correntes do Vedānta se ocupam com a compreensão do Ser Absoluto (Brahman) e sua relação com o ser humano, com o universo, com a divindade personificada (Īśvara), com o conhecimento da realidade, com o processo de libertação. 

O Vedānta não-dualista (advaita) considera que existe uma única realidade, que é o Ser Absoluto infinito, Brahman; ele é o único ser imutável e é idêntico à essência do ser humano, o ātman. O universo, pelo contrário, está sempre mudando e por isso não é real. Nada mais tem realidade, a não ser Brahman. O universo, os objetos materiais, as pessoas e os próprios seres divinos são desprovidos de realidade. Toda a multiplicidade aparente é produzida por māyā, o poder ilusório de Brahman; e a compreensão disso permite à pessoa reinterpretar as aparências, como um homem que percebe que aquilo que parecia prata não passa de um pedaço de concha. Quando a pessoa consegue ultrapassar essa ilusão, ela percebe que ele próprio (o ātman) é idêntico ao Absoluto, não existe separação ou dualidade, não existe um universo separado, tudo é uno. Essa unidade não pode ser descrita por características, está além dos conceitos. Brahman é desprovido de atributos (nirguṇa), mas pode ser indicado como realidade (sat), consciência (cit) e completude (ānanda). Ele pode ser atingido negando-se tudo o que é relativo, finito, dualístico, empírico, mutável. A libertação espiritual, no Advaita Vedānta, é a compreensão da unidade, a percepção de que o seu próprio ātman imutável é o ātman em todos os outros e idêntico ao Absoluto. O único caminho possível é o da sabedoria (jñāna). 

No Advaita Vedānta, os seres divinos são desprovidos de importância. Isso, evidentemente, entra em choque com a tendência devocional, que era muito forte no primeiro milênio da era cristã. Rāmānuja, que era um devoto de Viṣṇu, desenvolveu outra abordagem, chamada de não-dualismo qualificado (viśiṣtādvaita). Nesse tipo de Vedānta, a realidade tem três aspectos: o Soberano ou Governante (Īśvara), que é identificado com Viṣṇu e que é o Ser Absoluto (Brahman) dotado de qualidades (saguṇa); a consciência individual (cit); e a matéria inconsciente (acit). De uma forma semelhante ao Sāṅkhya, o Viśiṣtādvaita aceita que Brahman e o mundo material (Prakṛti) são ambos reais e diferentes, nenhum deles é falso ou ilusório. Todos esses aspectos são reais; porém, a única realidade independente é Īśvara, as consciências individuais e a matéria dependem dele para existir. É possível captar essa unidade por trás da multiplicidade por um processo não intelectual, pela devoção à divindade pessoal. Porém, a diferença entre o eu individual (jīvātman) e o Absoluto (sob a forma de Viṣṇu) nunca pode ser eliminada. 

A abordagem de Rāmānuja proporciona uma base filosófica para a tradição Vaiṣṇava; e pode ser adaptada para outras vertentes devocionais, bastando substituir Viṣṇu por outro deva ou devī. O mesmo ocorre com todas as outras interpretações do Vedānta que serão apresentadas a seguir. Em todas elas, a devoção (bhakti) é o método mais importante.

O Vedānta dualístico (dvaita) de Madhva também identifica Brahman com Viṣṇu (ou Nārāyaṇa), que é o ser divino supremo (Īśvara). Além de Brahman, existem a matéria (o mundo mutável de Prakṛti) e as consciências individuais (jīvātman) que estão sempre renascendo. Essas três realidades são distintas, mas apenas Brahman é independente e auto-existente. O ātman é individual e não é idêntico ao Absoluto (Brahman). Existe também uma multiplicidade de coisas no universo. A libertação pode ser obtida por devoção a Kṛṣṇa. No entanto, nem todas as pessoas libertas atingem o mesmo nível de felicidade, há uma hierarquia de estados que podem ser atingidos.

O Vedānta dualista-não-dualista (dvaitādvaita) de Nimbārka utiliza afirmações paradoxais, como a de que os seres humanos são tanto diferentes quanto não-diferentes do Ser supremo. Uma doutrina semelhante havia sido exposta por Bhāskara, um contemporâneo de Śaṅkara, que afirmava haver tanto uma diferença (bheda) quanto uma não-diferença (abheda) entre o eu individual (jīvātman) e Brahman. Segundo a doutrina Dvaitādvaita, há três categorias de existência: Īśvara (a divindade suprema); a consciência individual (cit, ou jīva); e a matéria inconsciente (acit). Cit e acit são diferentes de Īśvara porque possuem distintos atributos e capacidades; mas são não-diferentes de Īśvara porque não podem existir independentemente dele. O universo é real e é uma transformação (pariṇāma) de Īśvara, que é tanto sua causa material quanto sua causa eficiente. Brahman é uno, mas todos os seres existem potencialmente em Brahman, sob a forma de suas capacidades (śaktis). O caminho da libertação, para Nimbārka, é a devoção e entrega total a Kṛṣṇa e Rādhā.

O sistema do monismo puro (Śuddhādvaita) de Vallabha procura superar uma dificuldade do Advaita Vedānta: a existência de um poder (māyā) que encobre a realidade (Brahman). De acordo com o Śuddhādvaita Vedānta, o universo não é Brahman encoberto pela ilusão de māyā: o universo é o próprio Brahman, que tanto a causa quanto o efeito de tudo. A multiplicidade é uma substância única, real. Vallabha cita a Bṛhadāraṇyaka Upaniṣad, que afirma que Brahman desejou se tornar muitos e então se transformou na multidão de seres individuais que constituem o universo. As essências humanas individuais (jīvātman), envolvidas no ciclo de transmigração, também são idênticas ao Eu supremo (paramātman), que é Brahman, assim como não há diferença entre as fagulhas e uma fogueira. Porém, Brahman é o todo e as fagulhas são partes desse todo. Também nesse sistema, a devoção (bhakti) a Kṛṣṇa é o principal processo de transcendência, porém ela deve ser vista como um fim em si em não como um instrumento para a libertação (mokṣa). O devoto deve sentir-se realizado com a entrega e culto a Kṛṣṇa, sem esperar mais nada além disso. 

A doutrina Acintya-bhedābheda de Kṛṣṇa Caitanya Mahāprabhu tem pontos em comum com outras interpretações do Vedānta. O eu individual é diferente e não-diferente de Īśvara, e isso é incompreensível ou impensável (acintya) para os seres humanos. Da mesma forma, Īśvara é diferente e não-diferente de seus poderes, diferente e não-diferente de sua manifestação cósmica, o universo. O Ser Absoluto é diferente e não-diferente de sua forma pessoal, Viṣṇu. Tanto o Absoluto quanto a multiplicidade são reais, o universo não é irreal e os indivíduos humanos também são reais. Cada pessoa está para Īśvara como um raio de Sol está para o Sol. São qualitativamente não-diferentes, porém quantitativamente diferentes. Segundo Caitanya, Kṛṣṇa é a realidade absoluta e é dotado de todos os poderes, sendo a fonte de todas as emoções e qualidades. Os jīvas (indivíduos) são partes de Īśvara, que estão normalmente sob a influência dos poderes da natureza, mas que podem se libertar disso. A devoção pura é o único método de atingir essa libertação e o objetivo é o amor puro por Kṛṣṇa.

 

SURGIMENTO DOS SISTEMAS HETERODOXOS

Até o século VIII a.C., a população do subcontinente indiano vivia espalhada no campo e em pequenas aldeias. Em torno do século VII a.C., com o uso de instrumentos de ferro, houve uma grande expansão da agricultura, especialmente de cereais, incluindo o arroz. A população cresceu e começaram a surgir grandes cidades (dezenas de milhares de habitantes) e na região do norte da Índia (especialmente no vale do rio Ganges e seus afluentes) foram estruturados alguns grandes territórios com administração central, chamados Mahājanapada. Alguns deles estavam sob o domínio de dinastias reais (rājas), outros tinham uma administração controlada por grupos de clãs poderosos (gaṇa-saṅghas), que escolhiam o seu dirigente. 

O enriquecimento de agricultores, comerciantes e artesãos produziu nesse período um questionamento da antiga hierarquia das castas. A diversificação das profissões introduziu uma variedade social que não estava prevista nas regras brahmâṇicas. Tornava-se necessário o estabelecimento de regras sociais mais flexíveis do que as antigas. A transformação social, juntamente com a assimilação de populações das regiões vizinhas, que possuíam uma cultura distinta (inclusive sob o ponto de vista religioso) levou à discussão da tradição ortodoxa vêdica-brahmâṇica e ao surgimento de ideias e cultos heterodoxos. A importância dos sacerdotes (brāhmaṇas) foi questionada e muitos dos novos movimentos foram liderados por pessoas de origem kṣatriya (a casta dos guerreiros).

Nos séculos VII e VI a.C. há uma ebulição de novas propostas filosóficas e religiosas, na região das novas cidades (vale do Ganges). Algumas delas se tornaram muito importantes e tiveram enorme influência na Índia durante séculos, como o Budismo e o Jainismo. Outros movimentos iniciados na mesma época não tiveram tanto sucesso e desapareceram em pouco tempo, às vezes sem deixar obras que nos permitam conhecê-los melhor. As próprias obras budistas e jainistas mais antigas falam sobre diversos mestres e ensinamentos dessas outras correntes, mas sem entrar em detalhes. Todas essas correntes foram precedidas pelo movimento ascético Śramaṇa, sobre o qual temos apenas informações indiretas, pois suas obras não foram conservadas.

O idioma sânscrito, que já havia sofrido grandes transformações desde o período dos Vedas, sofreu nesse período uma maior influência dos outros idiomas existentes na região do vale do Ganges, surgindo então os idiomas chamados prākṛta – uma palavra que significa “natural”. Esses idiomas, que se tornaram comuns nas cidades, eram semelhantes, porém distintos, da linguagem “refinada”, saṃskṛta. Como o sânscrito era o idioma utilizado na tradição vêdica-brahmânica, os novos movimentos religiosos e filosóficos optaram, em diversos casos, pelo uso das línguas prácritas. A língua magadhī, que era muito falada na região de Magadha, foi adotada pelos jainistas para a composição de seus textos (āgamas) mais antigos. O pāli é uma outra língua prácrita, mais próxima do sânscrito, que adquiriu grande importância por sua associação com o Budismo. Os textos budistas mais antigos, incluindo todo o Tipiṭaka do Budismo Theravāda, foram escritos em pāli. 

A palavra Śramaṇa, que vem do verbo śram (esforçar-se) significa aquele que se esforça ou se dedica. Era utilizada no século VI a.C. para indicar um movimento ascético independente da tradição vêdica. O movimento pode ser muito mais antigo, mas é impossível descrever sua história por falta de informações antigas. Sabe-se que o movimento Śramaṇa criticava os rituais dos Vedas, dava pouca importância aos textos sagrados antigos (śruti) e considerava que o mais importante era obter a libertação (mokṣa) do ciclo de renascimento (saṃsāra) através do ascetismo (tapas) e práticas de meditação. Os śramaṇas não davam importância ou criticavam a crença nos devas e outros seres sobrenaturais, dando maior ênfase ao ser humano e à sua transformação. Eles viviam nos arredores das vilas e cidades, sobrevivendo com alimentos fornecidos pelas pessoas das proximidades. 

Foi a partir do movimento Śramaṇa que se desenvolveram não apenas o Budismo e o Jainismo, mas também outras correntes como as dos Ājīvikas, Ajñānas and Cārvākas. Não há uma unidade nessas diversas correntes e, por isso, supõe-se que os śramaṇas originais também não tivessem uma unidade de pensamento, mas defendessem doutrinas conflitantes. No século VI a.C. esses movimentos śrāmana estavam organizados sob a forma de comunidades de ascetas chamadas saṅghagaṇi lideradas por um saṅghin ou gaṇācarin (mestre do grupo). Um texto budista, Samaññaphala Sutta, identifica seis escolas śramaṇa anteriores ao Buddha, fornece o nome de seus líderes e dá uma descrição sucinta das mesmas: 

  • Pūraṇa Kassapa era o líder de um movimento śramaṇa amoralista, que afirmava não existirem normas éticas. Nada é moral ou imoral, não existe virtude nem pecado. Esse tipo de visão pode ter influenciado, posteriormente, algumas escolas tântricas.

  • Makkhali Gosāla era o líder dos Ājīvikas, que acreditavam no fatalismo e determinismo: as pessoas não são livres, tudo é consequência de leis naturais, nada pode ser alterado, tudo é predeterminado, incluindo o esforço que pode levar à libertação. Essa escola aceitava um atomismo semelhante ao da escola Vaiśeṣika (a qual, no entanto, aceitava a autoridade dos Vedas).

  • Ajita Kesakambalī era o líder da escola Cārvāka ou Lokāyata, uma antiga escola indiana materialista, que negava qualquer entidade imaterial. Nada resta depois da morte, quando a pessoa morre ela retorna aos elementos. Era voltada para os valores mundanos (por isso o nome Lokāyata) e defendia a busca de prazeres imediatos: coma, beba e se alegre.  

  • Pakudha Kaccāyana era o líder de uma escola materialista e atomista. Tudo é constituído a partir dos elementos terra, água, fogo, ar, juntamente com alegria, dor e consciência. Tudo o que ocorre é devido apenas ao rearranjo dessas substâncias eternas. Não existe um ser criador. 

  • Sañjaya Belaṭṭhaputta era o líder da corrente Ajñāna ou cética, que negava a possibilidade do conhecimento (jñāna) sobre qualquer tema filosófico. Esse movimento enfatizava a existência de diferentes opiniões sobre qualquer tema, tirando daí a consequência de que não existe o conhecimento. Além disso, afirmava que mesmo se houvesse conhecimento, ele seria inútil. 

  • Nigaṇṭha Nātaputta, mais conhecido como Mahāvīra, também é citado nos textos budistas. Era o líder do Jainismo, que ensinava regras de conduta, com proibições e a instrução ética de evitar todo mal. 

Através dessa amostra é possível perceber que não havia uma unidade de pensamento entre os śramaṇas; eles tinham diferentes doutrinas em relação a praticamente tudo. É claro que essa é apenas uma lista das correntes Śramaṇa que foram registradas numa obra budista; existiam certamente muitas outras no século VI.

 

BUDISMO

O Budismo foi criado por Siddhārtha Gautama (em pāli: Siddhattha Gotama), conhecido como Śākyamuni (o sábio do clã dos Śākyas). Ele nasceu em Lumbinī, no atual Nepal. A sua data de nascimento é discutida pelos historiadores, mas aceita-se geralmente que ele nasceu em torno de 563 a.C. e faleceu em torno de 486 a.C.

Siddhārtha participou de grupos de ascetas, tomando conhecimento de doutrinas filosóficas (incluindo o Sāṅkhya) e aprendendo técnicas de meditação, antes de desenvolver sua própria doutrina. Os seus ensinamentos básicos, de acordo com a tradição, seriam as “quatro nobres verdades” relativas ao sofrimento (duḥkha); e o “caminho óctuplo” para eliminar o sofrimento. O Buddha abandonou alguns conceitos anteriores importantes, como o de ātman, afirmando que existem três marcas da realidade (trilakṣaṇa): 

  1. Anātman, inexistência do Eu: não existe nada que tenha uma existência independente e real em si mesma; há apenas agregados de fenômenos condicionados.

  2. Anitya, impermanência: tudo muda constantemente nos fenômenos, não se pode encontrar nada de permanente.

  3. Duḥkha, sofrimento: nenhum fenômeno pode nos satisfazer de modo definitivo.

As “quatro nobres verdades” (catvāri āryasatyāni) contêm a orientação fundamental do Budismo original: 

  1. A verdade do sofrimento (duḥkha): a vida implica em sofrimento, insatisfação.

  2. A verdade da origem do sofrimento: ela provém do desejo (tṛṣṇā), dos apegos.

  3. A verdade da cessação do sofrimento: o fim do sofrimento é possível.

  4. A verdade do caminho: o método que leva ao fim do sofrimento é o caminho do meio, que segue o nobre caminho óctuplo.

Os oito membros (aṣṭāṅga) do nobre caminho óctupolo (ārya-aṣṭāṅga-mārga) são:

  1. samyag-dṛṣṭi: visão correta ou compreensão justa da realidade e das quatro nobres verdades.

  2. samyak-saṃkalpa: resolução correta, decidir libertar-se da avidez, da cólera, da ignorância. 

  3. samyag-vāc: palavra justa, não mentir, não semear discórdia ou desunião, não usar linguagem grosseira, não se vangloriar.

  4. samyak-karmānta: ação correta, respeitando os Cinco Preceitos (pañcaśīla).

  5. samyag-ājīva: modo justo de viver, profissão correta.

  6. samyag-vyāyāma: esforço ou perseverança justa para evitar o que é desfavorável e obter o que é favorável.

  7. samyak-smṛti: atenção justa, plena consciência ou tomada de consciência correta (das coisas, do corpo, das emoções, do pensamento, dos outros, da realidade).

  8. samyak-samādhi: concentração ou união justa, estabelecer-se no estado desperto.

Os cinco preceitos éticos (pañcaśīla) são os seguintes:

  1. não matar (não destruir a vida dos seres sensíveis);

  2. não roubar (não tomar aquilo que não lhe pertence ou aquilo que não lhe é dado);

  3. não ter conduta sexual incorreta (não manter relações sexuais ilegítimas ou vergonhosas);

  4. não mentir (não dizer palavras falsas ou inexatas);

  5. não tomar substâncias alcoólicas (não fazer uso de substâncias que alteram a mente).

Pode-se perceber que o Budismo era inicialmente uma doutrina principalmente ética, sobre o modo de viver e se comportar. Não prescrevia exercícios ou práticas, exceto duas: samyak-smṛti, que parece ter sido um tipo de concentração ou dhāraṇā; e samyak-samādhi, um tipo específico de estado de união ou samādhi. Não existiam teorias metafísicas no Budismo original; o mais importante não era filosofar sobre o universo e sobre o homem e sim obter uma transformação e libertar-se do sofrimento e do ciclo de renascimento.

Com o passar do tempo, o Budismo foi se modificando e ramificando em correntes completamente distintas, algumas das quais nem mesmo conservaram os preceitos do Buddha. Não existe apenas um Budismo; existem muitos Budismos diferentes e contraditórios entre si. 

 

JAINISMO

O Jainismo ou Jainamatam, em sânscrito (a doutrina do vitorioso ou jina) é um movimento que foi difundido por Mahāvīra, aproximadamente na mesma época em que surgiu o Budismo. No entanto, a tradição Jainista afirma que Mahāvīra não foi o fundador dessa corrente, e sim o vigésimo-quarto de seus grandes mestres (tīrthaṅkara – aquele que abre um caminho para passar por um rio). Os mestres anteriores a Mahāvīra não seriam recentes e sim muito antigos; o primeiro deles, chamado Ṛṣabha ou Ṛṣabhanātha, teria vivido há milhões de anos. 

O vigésimo-terceiro Tīrthaṅkara, segundo a tradição jainista, foi Pārśvanātha, que teria vivido em torno do século VIII a.C. Ele teria nascido em Vārāṇasī, tendo renunciado às atividades mundanas e se tornado um asceta, fundando uma comunidade monástica (saṅgha) na qual as castas não tinham importância. Atribui-se a ele o início da tradição de quatro proibições (caturyama dharma) impostas aos monges: não matar, não furtar, não mentir e não possuir bens (Ahiṁsā, Satya, Asteya, Aparigraha). A não-violência, ahiṁsā, é um dos aspectos centrais do ensinamento jainista e influenciou fortemente o Hinduísmo posterior. 

O vigésimo-quarto e último Tīrthaṅkara, conhecido como Mahāvīra (grande herói), é certamente uma figura histórica, citada em textos budistas, que lhe dão o nome de Nigaṇṭha Nātaputta ou Jñātaputta. Há diferentes tradições no Jainismo sobre a data em que ele nasceu. Uma versão indica o ano de 599 a.C., outra o ano de 572 a.C. Seu local de nascimento foi Kuṇḍapura ou Kuṇḍagrama, uma vila perto da cidade de Vaiśālī na região de Videha, no vale do Ganges.

Ao contrário do Buddha, que rejeitou o ascetismo (tapas) porque tais práticas não o haviam conduzido a nada de importante, Mahāvīra incluiu práticas ascéticas intensas no Jainismo, pois acreditava que eram elas que o tinham conduzido ao conhecimento supremo. Por outro lado, práticas de meditação (dhyāna) que eram fundamentais no Budismo tiveram apenas um papel secundário no Jainismo original. 

Além dos quatro Yamas que haviam sido ensinados por Pārśvanātha, Mahāvīra adicionou um quinto grande voto, o de castidade. No caso do Jainismo, as normas éticas tinham dois níveis diferentes. No caso de monges e monjas, as proibições eram radicais, absolutas; no caso de adeptos leigos do Jainismo, as proibições eram relativas e não tão radicais. A principal delas era a não-violência, Ahiṁsā. Mahāvīra admitia que os leigos, em seu dia-a-dia, realizavam inconscientemente atos de destruição ou violência contra os seres vivos, mas que isso não era tão grave. No caso de um monge ou monja, no entanto, isso era considerado inaceitável: eles só podem se alimentar de vegetais e não podem ferir nenhum inseto, nem mesmo seres invisíveis; precisam respirar através de tecidos e filtrar a água que vão beber, para não correr o risco de ingerir algum ser vivo e matá-lo. Qualquer ação acarreta o risco de produzir alguma violência ou sofrimento a outros seres; por isso, não agir é melhor do que agir; e o suicídio por inanição, Saṁlekhanā, é considerado um fim meritório. 

A filosofia jainista descreve a existência de sete realidades (tattvas) fundamentais: jīva, que é a substância espiritual individual, eterna e imaterial; ajīva, as substâncias inanimadas, constituídas por átomos; āśrava, o invólucro que cerca o jīva e que é tradicionalmente chamado de karman; bandha, aquilo que prende o jīva à matéria; saṁvara, a interrupção do afluxo de matéria ao jīva (cessação de acúmulo de karman, deixando de agir e de ter emoções); nirjarā, a eliminação da matéria acumulada (purificação pelo ascetismo); e mokṣa, a libertação do ciclo de renascimentos. 

No Jainismo, o ideal a ser atingido é tornar-se um Arihant ou “conquistador” (Arhat, em sânscrito), uma pessoa que conquistou suas paixões internas (kaṣāyas) como apego, raiva, orgulho e ódio. Tendo destruído esses inimigos, ele atinge o Eu puro e se torna um Kevalin, ou seja, aquele que possui o conhecimento supremo (kevala jñāna). Um arihant é também chamado de jina (vitorioso). Ao final de sua vida, o arihant destrói o resto do karman que lhe resta e atinge a libertação (mokṣa) libertando-se do ciclo de renascimentos e tornando-se um siddha (perfeito) sem corpo, porém mantendo sua individualidade. 

O eu interno (jīva), puro, possui o conhecimento supremo (kevala jñāna); porém, ele está obstruído pelas imperfeições humanas. Quando elas são superadas, esse eu interno reflete como um espelho límpido, por assim dizer, todas as substâncias em seus infinitos modos, abrangendo o passado, presente e futuro. O kevalin obtém conhecimento infinito (ananta jñāna), percepção infinita (ananta darśana), felicidade infinita (ananta sukha) e poder infinito (ananta vīrya). Ele também se liberta de 18 imperfeições: renascimento, velhice, sede, fome, espanto, desprazer, arrependimento, doença, pesar, orgulho, ilusão, medo, sono, ansiedade, suor, apego, aversão e morte.

No momento da libertação ou nirvāṇa, o arihant se livra dos últimos quatro tipos de karman: nāma (o karman que constitui o ego), gotra (o karman associado à família e à estrutura social), vednya (o karman que produz dor e prazer) e ayuśya (o karman que produz o nascimento e determina a duração da vida).

Nos séculos posteriores a Mahāvīra, o Jainismo sofreu muitas alterações e divisões, assim como o Budismo. Houve, posteriormente, a introdução de rituais e de aspectos devocionais que não existiam antes; e também o desenvolvimento de um Yoga jainista.

 

TANTRA

As doutrinas tântricas se enquadram na categoria de não-ortodoxas (nāstika), embora tenham uma conexão mais forte com a tradição dos Vedas e das Upaniṣads do que o Budismo e o Jainismo. 

As mesmas condições históricas que, no século VI a.C., abriram espaço para o desenvolvimento das doutrinas não-brahmâṇicas como o Budismo e o Jainismo, também permitiram o surgimento das primeiras correntes tântricas, que ofereciam alternativas à tradição ortodoxa, vêdica-brahmâṇica. A fase mais antiga do Tantra (antes do início da era cristã) é pouco conhecida, pois os textos tântricos que chegaram até nós só foram produzidos nos primeiros séculos da era cristã. No entanto, existem obras não tântricas do período antes da era cristã que mencionam algumas de suas correntes – como Pāñcarātra e Pāśupata que são, respectivamente, abordagens tântricas associadas ao culto de Viṣṇu e de Śiva.  

Na tradição Hindu, o Tantra é um método espiritual de libertação (yoga) que substitui os ensinamentos indianos antigos (a tradição dos Vedas) por outros diferentes, opostos às normas antigas (dharma). O Tantra rejeita o ascetismo e propõe o uso de todas as coisas que possam atrair uma pessoa (incluindo sexo) como instrumentos para a libertação espiritual. Porém, Tantra não se reduz a práticas sexuais; é muito mais do que isso.

De acordo com o Tantra, não há nada ruim ou errado no universo, apenas existe erro no interior da mente humana. A pessoa que superou a ignorância pode captar o aspecto perfeito e divino em cada coisa que existe, utilizando-a como um instrumento para entrar em contato com o infinito. Muitas filosofias indianas valorizam apenas a libertação espiritual (mokṣa), colocando em segundo plano ou desvalorizando os outros três objetivos humanos (puruṣārthas) – prazer e conforto (kāma), posses e poder (artha) e cumprir os deveres sociais (dharma). O Tantra, pelo contrário, propõe a obtenção de todos esses quatro objetivos ao mesmo tempo: kāma, artha, dharma e mokṣa. 

O Tantra, considerado como uma prática (Yoga), utiliza uma variedade de técnicas para que a pessoa se transforme. Elas incluem mantras, rituais de vários tipos, meditações utilizando diagramas místicos (yantras e maṇḍalas), utilização de hasta-mudrās, introjeção de poderes divinos no próprio corpo (nyāsa), etc. Esse tipo de Yoga se desenvolveu principalmente a partir do início da era cristã, mas suas raízes são mais antigas.

No período da Antiguidade, antes da era cristã, a palavra “Tantra” ainda não tinha o significado técnico posterior. Era um termo que podia ser utilizado para representar qualquer texto como, por exemplo, a obra fundamental do Sāṅkhya atribuída a Kapila, chamada Ṣaṣṭitantra. O seu sentido técnico – de um conjunto de ensinamentos e práticas de um tipo especial – começa a surgir nos primeiros séculos da era cristã. 

Não existe apenas um tipo de Tantra; existem muitos tipos de Tantra indianos tradicionais (anteriores à colonização europeia), assim como existem muitos Budismos. Apenas para dar uma ideia dessa diversidade, podemos citar os nomes de algumas importantes correntes tântricas indianas antigas: Aghora, Āḷvār, Bāul, Gauḍīya, Kālāmukha, Kālīkula, Kānpaṭha, Kāpālika, Kaula, Krama, Lākula, Liṅgāyat, Nātha, Nāyaṇar, Pāñcarāṭra, Pāśupata, Sahajiyā, Śaivasiddhānta, Śrīvidyā, Trika. E esta é apenas uma pequena amostra da variedade existente. Além das doutrinas tântricas hinduístas, é importante mencionar a existência das correntes tântricas que se desenvolveram posteriormente no Budismo e no Taoísmo; elas possuem pontos de contato, mas também grandes diferenças em relação à tradição hindu. O Jainismo e o Islamismo também foram influenciados em torno do século X d.C. pelo Tantra, embora não possam ser considerados como pertencentes ao movimento tântrico.

Há vários ramos diferentes do Tantra. Eles se diferenciam, em primeiro lugar, em relação ao ser divino que é considerado superior a todos os outros. Os principais ramos do Tantra estão relacionados a Śiva e à Śakti (a Grande Deusa); mas há outros ramos associados a Viṣṇu, a Gaṇeśa, a Sūrya (o deva do Sol) e outros. Cada um desses ramos tem certos textos fundamentais, que são considerados como revelações divinas. No Tantra Śaiva, esses textos são chamados āgamas, uma palavra que significa “aquilo que veio (até nós)”. No ramo Śākta, os textos são chamados tantras; e no ramo Vaiṣṇava, são chamados saṁhitā. Por isso, alguns autores consideram que apenas o ramo associado à Grande Deusa deveria receber o nome “Tantra”. 

A palavra Tantra significa originalmente teia (como a teia de aranha), tecido, rede. Indica a ideia de fios entrelaçados, unidos e formando um todo. Representa a ideia de que todas as coisas do universo estão conectadas, entrelaçadas, unidas entre si, através de uma espécie de fio invisível que forma essa união íntima de todas as coisas.

Há duas realidades que unem tudo e que estão dentro de todas as coisas do universo. 

  • Uma é a consciência pura: cit, ātman, puruṣa;

  • Outra é o poder divino que permeia toda a natureza: prakṛti, Śakti.

Essa Potência (Śakti) está dentro de cada um de nós, e está também fora de nós. Penetrando em tudo, o Poder torna todas as coisas divinas. Porém, nosso modo comum de ver o universo e de vermos a nós mesmos não permite que enxerguemos essa perfeição em tudo. 

Nossa atenção interna e externa está geralmente voltada para coisas imperfeitas, para as trevas (tamas), para a violência (rajas), para as dualidades e conflitos, impedindo de ver a Realidade luminosa (sattva). O Tantra, como prática, leva a uma transformação da pessoa, permitindo-lhe ver além das aparências, percebendo a realidade divina em tudo.

Uma parte da base do Tantra vem do pensamento indiano tradicional, podendo ser encontrada nas Upaniṣads, por exemplo, que enfatizam o conhecimento do Absoluto, Brahman, que está presente em todas as coisas, em todos os seres do universo.

Outra parte, no entanto, é diferente. Pois o Tantra mais radical é não-dualista, ele rompe com todo tipo de limitações impostas pelo pensamento racional, conceitual. E isso se reflete também nas práticas do Tantra, que não respeitam regras morais e éticas. Tudo aquilo que existe pode ser utilizado como um veículo para entrar em contato com a Divindade, nada é errado ou impuro. Desde que tenha desenvolvido a atitude espiritual correta, o praticante do Tantra pode vivenciar a perfeição em tudo. 

 

“Não existe nada que não se possa fazer e nada que não se possa comer. Não há nada que não se possa pensar ou falar, seja agradável ou desagradável. O Eu supremo existe dentro dele assim como nos outros seres. Assim considerando, o yogin deve se aproximar da comida e da bebida e das outras coisas.” (Hevajra-Tantra)

 

Algumas das práticas tântricas utilizam alimentos que nos parecem repugnantes – por exemplo, comer fezes. Na seita tântrica radical dos Aghori, o yogin vive no local de cremação de cadáveres se alimentando de restos de alimentos e dos corpos dos mortos. Tanto eles quanto os membros da seita Śaiva Kāpālika usam uma cuia feita de um crânio humano para comer e beber.

Para eles, tudo o que existe é perfeito, não havendo diferença entre tamas, rajas e sattva. Negar a perfeição de qualquer coisa seria negar o aspecto sagrado representado pela presença do Ser Divino em tudo.

As práticas mais transgressivas do Tantra estão relacionadas ao “Tantra da mão esquerda”, chamado Vāmācāra. Esta palavra vem de vāma: associado ao lado esquerdo; o oposto, contrário, invertido; que age de modo oposto. O Vāmācāra utiliza objetos, substâncias e lugares que são considerados como impuros pelos profanos. O caminho oposto é o Dakṣinācāra ou “Tantra da mão direita”, que utiliza práticas com mantras, yantras, técnicas de visualização, meditação assentada, práticas corporais como os āsanas, devoção, rituais em templos e outras atividades que não violam as normas vêdicas e brāhmaṇicas nem chocam os leigos.

No ocidente, o nome Tantra está fortemente associado ao sexo. É utilizado às vezes como uma simples desculpa teórica para práticas sexuais, sem objetivo espiritual. O suposto Tantra ocidental (ou “neo-tantra”) não é um método de libertação espiritual (mokṣa) e não pode ser considerado um tipo de Yoga.

Tantra Yoga não é praticar Yoga nu (naked yoga), ou fazer posturas (āsanas) com um parceiro sexual. Essas são invenções ocidentais recentes, que nada têm a ver com a tradição do Tantra indiano. 

Algumas correntes do Tantra indiano têm, é verdade, práticas de natureza sexual, mas isso é apenas um dos seus múltiplos aspectos. Há linhas do Tantra que não utilizam métodos sexuais.

Há vários textos tântricos que descrevem rituais utilizando os pañca-makāra = os 5 MAs

  • madya – vinho, bebida alcoólica

  • māṁsa – carne

  • matsya – peixe 

  • mudrā – símbolo, parceira sexual

  • maithuna – relação sexual

No entanto, sexo não é o centro do Tantra. O ponto central é obter uma transformação de nosso modo de ver a realidade. Isso pode ser conseguido com práticas que podem utilizar aquilo que desperta em nós emoções e sensações muito fortes. Através delas, o modo comum de funcionamento de nossa mente é ultrapassado, e surgem vivências espirituais completamente diferentes. Gradualmente, o yogin ultrapassa o véu que encobre a realidade divina, e por fim se estabelece um contato constante com esse estado de consciência.

A única vertente do Tantra que dá grande importância aos elementos sexuais é a corrente Kaula. Nas outras, é um aspecto secundário (ou inexistente). O “neo-tantra” ocidental se refere exclusivamente à sexualidade; o Tantra, porém, é sobre espiritualidade.

Por causa da variedade de correntes tântricas tradicionais, é difícil fazer uma descrição que seja válida para todas elas. Porém, vamos tentar indicar os principais pontos que são comuns à maior parte delas.

  • O Tantra é um caminho para a libertação espiritual (mokṣa); portanto, é um tipo de Yoga

  • É considerado um caminho mais rápido para a libertação do que os métodos antigos, e o único adequado para a fase atual da humanidade (kali-yuga), a era da imperfeição

  • Desprezo ou crítica da tradição vêdica-brahmâṇica: Tāntrika se opõe a Vaidika (mas há exceções)

  • Importância central dos rituais (pūjā), especialmente evocação e culto de devatās

  • Proliferação do número e tipos de seres divinos

  • Práticas de visualização e auto-identificação com a divindade

  • Teoria mística do som e da fala – o som tem origem divina e é um instrumento de transformação

  • Importância central de mantras, muitos deles sendo sons impossíveis de traduzir

  • Instalação de mantras em pontos específicos do corpo (nyāsa, práticas internas com bīja-mantras)

  • Doutrina esotérica (secreta): necessidade de iniciação e orientação pelo guru

  • Práticas de meditação relacionadas com os seres divinos, utilizando instrumentos adicionais (mantra, yantra, mūrti, ...)

  • Uso ritual de maṇḍalas, especialmente na iniciação tântrica

  • Revalorização positiva do corpo humano

  • Teoria sobre fisiologia sutil, cakras, nāḍīs, kuṇḍalinī

  • Relação entre seres divinos, estrutura do universo, lugares de peregrinação e partes do corpo do praticante

  • Utilização de práticas com o corpo (kāya-sādhana) para a libertação espiritual: āsanas, prāṇāyāma, mudrās, ...

  • Aceitação de valores mundanos, que não entram em conflito com a busca da libertação (mokṣa)

  • Busca de poderes sobrenaturais (siddhis), incluindo a imortalidade física, e utilização de magia (inclusive para destruir os inimigos)

  • Os praticantes são leigos, incluindo pessoas casadas (não é uma comunidade de religiosos)

  • Simbologia bipolar deva/devī e transcendência da dualidade (união de opostos)

  • Rejeição das diferenças de casta (varṇa) e gênero

  • Rejeição das normas brahmâṇicas (dharma); realização de atos proibidos; transgressão do dharma

  • Rejeição da dualidade puro / impuro; utilização de substâncias, objetos e lugares que são considerados impuros na tradição brahmâṇica

  • Revalorização positiva do papel e da importância das mulheres

  • Importância das divindades femininas

  • Revalorização positiva do universo material e do Poder (Śakti) que o produz

  • Práticas voltadas para a transformação da pessoa em um ser divino

Nem todas as correntes tântricas incluem todos esses aspectos; e há correntes não-tântrica que incluem alguns deles. O Haṭha-Yoga tradicional, por exemplo, tem uma origem tântrica e compartilha diversos dos componentes indicados acima; mas não inclui outros, como o culto às divindades, o uso de mantras, a iniciação e o ritual tântrico.

Vamos descrever a seguir alguns pontos da visão Śākta. Porém, muitos aspectos são comuns às diversas linhas tântricas.

Na doutrina tântrica Śākta, tudo o que se manifesta no universo como matéria, vida e consciência é o Poder Divino (Śakti). O Poder é feminino. É a Grande Deusa (Mahā Devī), a Mãe de todos os seres e dos próprios Devas. Tudo o que existe brota dos órgãos genitais (Yoni) da Grande Mãe.

Aquele que presencia o poder é Śiva. Não existe Śiva sem Śakti, nem Śakti sem Śiva: “na śivaḥ śaktirāhito na śaktiḥ śivavārjita”. 

Śiva, sozinho, é semelhante a um cadáver (śava), pois ele próprio não tem poderes. Ele só tem o poder que emana da Śakti. Apenas quando está unido à sua Śakti, Śiva se torna o deva poderoso. Śiva é, essencialmente, a consciência inativa, é aquele que testemunha a ação da Śakti. Os outros devas também possuem suas respectivas Śaktis e são igualmente incapazes, sem elas.

A fusão entre Śakti e Śiva é representada pela união sexual entre eles, ou por uma figura com os dois sexos (Ardhanārīśvara), um lado sendo masculino (direito), e o outro feminino (esquerdo). 

Śiva e Śakti, unidos, formam o Absoluto não-manifesto, ou Brahman, que pode ser descrito por Sat, Cit, Ānanda (realidade, consciência, beatitude). Eles se manifestam quando se separam. Quando estão unidos em um só, Paraśiva (o Śiva supremo) e Paraśakti (a Śakti suprema) são inativos e invisíveis. 

Esse estado primordial corresponde à noite de Brahman, em outras tradições. É o estado que precede o surgimento do universo, da multiplicidade. Nesse estado de união, Śiva pode ser pensado como um ponto, e Śakti como uma linha enrolada em torno deste ponto. Como a linha não tem espessura, é impossível distinguir o ponto e a linha. Eles são uma única coisa.

A criação do universo se dá quando Śiva e Śakti se separam, ou seja, com o surgimento da dualidade. Quando a linha (Śakti) se desenrola do ponto central (Śiva), surgem a meia-lua (Ardha-candra) e o ponto (Bindu) que são representados na parte superior do símbolo do Oṁ.

À medida que se desenrola, a Śakti se manifesta sob a forma de um som primordial (Nāda), e através do som ela começa a criar o universo. O som é um dos principais instrumentos do Poder, no Tantra. Em algumas práticas, o tantrika pode ouvir os sons primordiais produzidos pela Grande Deusa.

Os seres do universo são descritos por nome (nāma) e possuem uma forma (rūpa). O som (śabda) e a palavra (vāc) são manifestações da Śakti, que dão forma aos seres. Os nomes das coisas, em sânscrito, não são considerados arbitrários e sim como contendo a essência de cada coisa.

A Śakti não apenas cria todos os seres, ela permanece dentro deles. A Śakti imagina o universo, por sua própria vontade, pelo prazer de criar, e se incorpora nele. O universo não tem essência própria, é vazio, mas ao mesmo tempo contém o absoluto.

De acordo com o Tantra, em todos os seres do universo se manifestam o poder de Śakti e a consciência de Śiva. O Absoluto está presente em todas as manifestações do universo. Portanto, tudo o que existe é sagrado. No pensamento dos Vedas, no entanto, apenas algumas coisas são consideradas divinas.

No centro de cada coisa estão Śiva e Śakti, que contêm tudo o que existe. Por isso o Tantra afirma: “Aquilo que está aqui está em toda parte. Aquilo que não está aqui não está em lugar nenhum”: “yad ihasti tad anyatra, yannehasti na tat kvacit”.

Não é preciso fazer peregrinações nem buscar lugares sagrados distantes. Tudo o que existe no universo é perfeito, divino, e Eu sou tudo isso, e tudo isso existe em mim.

Toda a realidade e toda pessoa é, essencialmente, Śiva-Śakti, mas de forma específica todo homem é Śiva e toda mulher é Śakti. Perceber a realidade mais profunda disso é um dos caminhos para a libertação espiritual. Mas é preciso ultrapassar as aparências, os níveis mais superficiais, encontrando a essência divina no interior de cada pessoa.

Embora nossa natureza seja divina, e tudo o que nos cerca também seja, nossa percepção usual da realidade é limitada, dualista, pobre. É a própria magia (māyā) da Śakti que dá a aparência de finito ao infinito, de múltiplo àquilo que é uno, de específico (dotado de nome e forma) àquilo que não tem nome nem forma, de destrutível ao que é eterno. Isso faz parte da brincadeira (lilā) da Deusa.

A Śakti envolve toda a criação divina, perfeita e ilimitada com um véu mágico, mas ela própria cria por toda parte as portas através das quais podemos atravessar a ilusão e chegar à percepção clara da realidade divina. Ela oculta e revela. Penetrando através de Śakti-Māyā é possível atingir o absoluto, ultrapassando as limitações e dualidades.

A compreensão e o contato direto (vivência) da Śakti é um aspecto central do Tantra Śākta. A Śakti pode ser vista sob seus aspectos bondosos, como a Mãe (Mā) ou como a esposa / amante de Śiva, bela, sedutora e sábia. No entanto, ela pode também ser vista sob seu aspecto destruidor, horrível, como Kālī ou Kālikā, a Deusa Negra, que destrói as ilusões, aniquila as forças do egoísmo e leva as pessoas a verem a realidade divina. 

A pessoa em um corpo (jīva) conhece apenas os níveis mais baixos da realidade e se confunde com eles. No entanto, é possível se transformar, atingindo uma compreensão diferente da realidade. Às vezes se descreve essa transformação como uma libertação (kaivalya) ou como a união ao Eu Supremo (Paramātma).

No Tantra, a pessoa viva (jīva) e o Eu Supremo possuem a mesma natureza, por isso eles não podem se unir. O Jīva não se liberta, ele pode apenas perceber que nunca esteve preso. Para isso, ele precisa penetrar através dos véus de Māyā, a magia da Śakti, através da sabedoria (jñāna) obtida através da vivência (vijñāna), conhecendo diretamente a Śakti, tornando-se um jivanmukta e mantendo-se no mundo. O objetivo não consiste em se afastar do universo criado por Śakti, e sim percebê-lo como ele é: infinito, absoluto, eterno, sem dualidades. Através do Śākta-Tantra, o adepto atinge a libertação voltando-se para fora e não para dentro. Ele procura se conectar à rede divina do universo.

Adotando uma visão não-dualista (advaita), a doutrina do Tantra admite que tudo é igualmente puro e perfeito. Por isso, o Tantra permite obter a iluminação (mokṣa) desfrutando do mundo (bhoga). No entanto, o Tantra não é uma busca de prazeres; prazer e dor são indiferentes.

Infelizmente, o Tantra tem sido muito distorcido, desde o século XX. Por isso, é difícil encontrar obras confiáveis sobre o assunto. Os livros de Sir John Woodroffe (“Arthur Avalon”), embora antigos, contêm estudos sérios e traduções de textos tradicionais. Infelizmente, sua leitura não é fácil e não estão disponíveis em português. Já no início do século XX alguns autores ocidentais começaram a criar o “neo-tantra”, fortemente associado à sexualidade. Um dos primeiros foi o ocultista britânico Aleister Crowley (1875-1947), que divulgou práticas de magia sexual com o nome de Tantra. “Agehananda Bharati”, pseudônimo de Leopold Fischer (1923-1991), publicou obras em que apresentava o Tantra como uma busca de sexo e prazer. Na década de 1960, Omar Garrison publicou um livro de grande sucesso (traduzido para o português): “Tantra, the yoga of sex”, que ajudou a difundir a ideia de que a essência do Tantra é o sexo e que isso pode trazer a salvação espiritual para o ocidente. Outras obras populares do mesmo autor são “O mundo secreto da Interpol”, “A enciclopédia da profecia”, “A história secreta da cientologia” e “Astrologia médica”. 

 

Mas então não há obras recentes boas sobre o Tantra indiano? Sim, existem, mas pouquíssima coisa está disponível em português. Uma boa exceção é a obra de Georg Feuerstein (1947-2012): “Tantra. Sexualidade e espiritualidade”. O orientalista Heinrich Zimmer (1890-1943) apresenta uma visão geral útil em seu livro “Filosofias da Índia”. O livro de Mircea Eliade (1907-1986) “Yoga imortalidade e liberdade”, embora antigo, contém uma boa descrição do Tantra Yoga. Há traduções para o espanhol de obras importantes, como a de André Padoux, “El tantra: La tradición hindú” e alguns livros de Sir John Woodroffe.  

Vedanta
Surgimento dos sistemas
Budismo
Jainismo
Tantra

PĀŚUPATA

A corrente Pāśupata é um dos mais antigos movimentos Śaiva (associado a Śiva). É uma das doutrinas filosóficas citadas no Mahābhārata. Provavelmente já existia alguns séculos antes da era cristã. Foi sistematizado no século II d.C. por Nakulīśa, autor da obra Pāśupata Sūtra. A corrente Pāśupata é de natureza tântrica, embora costume ser classificada como pré-Tantra, por sua datação.

A palavra Paśupati é um dos nomes dados a Śiva e significa “senhor dos animais”. Na tradição Pāśupata, dá-se o nome de Pati ao próprio Śiva (o Senhor), e de Paśu (animal) às pessoas em seu estado inferior, preso ao mundo material. O aprisionamento é chamado pāśa. 

No Mahābhārata, o próprio Śiva explica alguns aspectos da doutrina Pāśupata:

Com a ajuda de argumentos dirigidos à razão, os devas e os dānavas extraíram dos Vedas que tem seis ramos e do sistema de Sāṅkhya e Yoga uma doutrina que os levou à prática das austeridades mais severas durante muitos anos. No entanto, a doutrina que eu extraí não tem paralelos e produz benefícios de todos os tipos. Ela está aberta à prática por homens de todos os modos de vida e leva à libertação. Ela pode ser adquirida em muitos anos ou pelo mérito, por pessoas que controlaram seus sentidos. Ela está envolta em mistério. Os que são desprovidos de sabedoria a censuram. Ela se opõe aos deveres que foram estabelecidos para os quatro tipos de homens e para os quatro modos de vida [varṇa-āśrama] e está de acordo com esses deveres apenas em alguns aspectos. Aqueles que sabem tirar conclusões podem compreender seu valor; e os que transcenderam todos os modos de vida são dignos de adotá-la. Ó Dakṣa, essa doutrina auspiciosa chamada Pāśupata foi extraída por mim. Sua observância própria produz imensos benefícios. (Mahābhārata XII.285)

Esta citação indica alguns dos aspectos dessa doutrina que são comuns ao Tantra: o ensinamento é considerado como diferente dos Vedas e das doutrinas vêdicas; seu objetivo é a libertação espiritual; é um conhecimento secreto; está aberto às pessoas de todas as castas e é adequado para os que ultrapassaram os diversos estágios de vida (āśramas); suas práticas não respeitam as regras (dharma) da tradição vêdica-brahmâṇica. 

O Pāśupata Sūtra de Nakulīśa apresenta principalmente regras de comportamento que os seguidores dessa corrente devem cumprir. No entanto, o comentário (bhāṣya) escrito por Kauṇḍinya descreve a base filosófica dessa corrente. 

Paśupati, Śiva ou Maheśvara (Mahā-Īśvara, o grande Soberano) é considerado não como um deva entre muitos, mas como o Absoluto, Brahman. Ele não tem princípio, não nasceu, é imutável e indestrutível. Ele deve ser meditado em seu aspecto supremo, sem características (niṣkala), sem associação com qualquer das qualidades que lhe são atribuídas. Ele não pode ser representado por conceitos, ele está além das palavras (vāg-viśuddha). 

 Maheśvara tem o poder de conhecimento e de ação em um grau infinito. Ele controla tudo e é considerado como produzindo todas as coisas a partir de sua própria natureza, como uma brincadeira. Ele permeia tudo e controla todas as ações de todos os seres. Ele é a causa suprema e está presente também nos seus efeitos. Tudo no universo é criado, mantido e destruído por ele, porém o universo é eterno, pois sua causa (o Grande Soberano) é eterna. O mundo das causas e efeitos existe graças ao poder dele; assim, Śiva pode manter essa causalidade, ou pode alterá-la. 

O sistema filosófico Sāṅkhya havia dividido a realidade em uma série de princípios (tattvas), dos quais os mais importantes eram Puruṣa (a consciência, inativa) e Prakṛti (a natureza, ativa). De acordo com o Sāṅkhya, a natureza tem um dinamismo próprio e produz todos os seres do universo, por si própria. Porém, no sistema Pāśupata, apenas Śiva é a causa de tudo; a natureza não pode agir e ser causa de coisa alguma, por si própria. Ela só atua porque é permeada por Pāśupati. 

No sistema Pāśupata, Maheśvara está acima e além das 25 categorias do Sāṅkhya. Maheśvara permeia tudo, de Puruṣa e Pradhāna (a natureza primordial) até os elementos grosseiros. Puruṣa é o segundo nível, ele permeia os 24 tattvas inferiores. A Natureza permeia os 23 tattvas seguintes, e a buddhi permeia os 22 tattvas, de ahaṅkāra até o elemento grosseiro terra; e assim por diante.  

Todas as coisas do universo são regidas pela relação entre causa (kāraṇa) e efeito (kārya). Os seres conscientes que não estão libertos são chamados de paśu, porque são como animais. Sua animalidade (paśutva) consiste em serem impotentes em superar essa relação entre causa e efeito; essa impotência é sua prisão (pāśa), que produz sofrimento (duḥkha). 

A doutrina usual do karman e do ciclo de renascimentos (saṁsāra) aparece, nessa doutrina, como consequência da causa e efeito. Porém, esse ciclo pode ser rompido.

A vontade ilimitada de Paśupati pode atuar no universo seja através das relações de causa e efeito, seguindo os processos naturais; ou interferindo diretamente em qualquer sequência e alterando seus processos. Independentemente das ações de uma pessoa, ele pode produzir o aprisionamento ou a libertação. Por isso, embora as pessoas possam e devam se esforçar para atingir a libertação, elas também precisam se devotar a Maheśvara, pois a compaixão (karuṇā) do grande compassivo (Mahākāruṇika) as libertará. Kauṇḍinya afirma claramente que a libertação do sofrimento não pode ser obtida pela sabedoria (jñāna), pelo esforço (vairāgya) ou pela virtude (dharma), mas sim apenas pela graça (prasāda) de Paśupati.

De acordo com o Pāśupata-sūtra, a libertação vem diretamente pela graça de Śiva, nunca de outra forma. Porém, para receber essa graça, a pessoa precisa se mostrar digna disso, seguindo as práticas descritas nas escrituras dessa corrente. O comportamento (vidhi) prescrito para os seguidores dessa linha incluem certas normas éticas – um conjunto de proibições e obrigações – destinadas a evitar ou reduzir o acúmulo de novas impurezas. Os efeitos de ações errôneas que já foram praticadas são dissolvidos por um conjunto de práticas, que em um primeiro nível incluem dançar, rir e cantar e, em um segundo nível, praticar ações ridículas e semelhantes às de uma pessoa louca, para ser desprezado pelas outras pessoas – o que levaria a uma purificação. O Pāśupata-sūtra indica que eles devem caminhar nus, com cabelo sem cortar e enrolado, todo o corpo coberto de cinzas. Gradualmente, eles devem ir se destacando de tudo o que os cerca, ficando indiferentes a prazer e dor, ao certo e ao errado e outras dualidades. 

Essa purificação, que leva a pessoa a perder a inclinação ou apego pelas coisas mundanas, deve ser acompanhada por práticas de yoga, que são entendidas como concentrar-se e meditar sobre Śiva, apenas. Yoga é entendido como junção ou fusão do Eu mais profundo da pessoa com Īśvara (ātmeśvara-saṃyogo yogaḥ). Não se trata de uma mera compreensão, mas de um ato pelo qual a pessoa se encontra diretamente com Śiva. À medida que esse processo de intensifica e aprofunda, a pessoa atinge a união com Īśvara (sāyujya) e a libertação, que é permanente, irreversível, ultrapassando todo sofrimento. 

Kauṇḍinya critica o objetivo descrito no Sāṅkhya, que é o isolamento completo de Puruṣa em relação ao universo (Prakṛti). Na doutrina Pāśupata, estar liberto é estar conectado a Śiva, e não estar dissociado de todas as coisas. 

A corrente Pāśupata se dividiu em vários ramos, como o Lākula, do qual não são conhecidos textos. Os seguidores dessa vertente procuravam imitar Bhairava, uma forma terrível de Śiva. Além de cobrir o corpo com cinzas e andarem nus (como os Pāśupatas), utilizavam um pote para comida feito de crânio humano, utilizavam um cordão sagrado (yajñopavīta) feito de cabelos tirados de cadáveres e se enfeitavam com ornamentos (colares, brincos e braceletes) feitos de ossos humanos. Ao caminhar, carregavam um bastão em cuja ponta havia um crânio. Ao contrário dos Pāśupatas, os Lākulas não respeitavam os Vedas nem as normas éticas brāhmaṇicas. Utilizavam bebidas alcoólicas e faziam o que tinham vontade, não reconhecendo nenhuma proibição. Deviam meditar constantemente em Rudra (a forma de Śiva nos Vedas) e vê-lo em todas as coisas do universo. 

Outro ramo posterior, ativo entre os séculos IX e XIII, foi chamado Kālāmukha – um nome que vem de kāla (negro) e mukha (rosto) – porque utilizavam uma marca negra (tilaka) no rosto para se identificarem. Kāla era também um nome de Rudra, a forma vêdica de Śiva. Embora os Kālāmukhas fosse ascetas (como seus predecessores), eles se organizaram em uma ordem monástica e tiveram seus próprios centros e templos. Aceitavam parte da tradição dos Vedas, porém se baseavam também em escritos tântricos (āgamas) Śaivas.

Em torno do século XIII surgiu o ramo dos Liṅgāyat, assim chamados porque utilizam um pequeno liṅga pendurado no pescoço por um cordão, que utilizam em seus rituais pessoais. Eles foram influenciados tanto pelo Pāśupata quanto pelo Śaiva Siddhānta, que será descrito a seguir. Essa tradição ainda existe, principalmente na região de Karnataka. 

 

ŚAIVA SIDDHĀNTA

A corrente Pāśupata é a mais antiga linha de pensamento Śaiva que conhecemos e começou a se desenvolver antes do surgimento dos textos tântricos propriamente ditos, que começam a aparecer nos primeiros séculos da era cristã. A corrente Śaiva Siddhānta, pelo contrário, desenvolve-se com a composição dos textos tântricos mais antigos, chamados āgamas – uma palavra que significa “o que veio (até nós)”. Esses textos, na tradição tântrica, são considerados como revelações do próprio Śiva, ou seja, não possuem autor humano. Sofreu também a influência da corrente bhakta Śaiva que já existia e que produziu uma literatura escrita em Tâmil, no mesmo período. Depois, a doutrina foi sistematizada nos séculos X-XI d.C. por diversos pensadores e se tornou a mais influente corrente Śaiva, especialmente no Sul da Índia, existindo até hoje. 

A palavra “siddhānta” é a combinação de “siddha”, que significa completo, realizado, perfeito; e “anta” que é o fim, o término, a culminação. Assim, siddhānta é o cume da perfeição. Essa designação é utilizada para tratados de muitos tipos como, por exemplo, na astronomia e na matemática. 

O Śaiva Siddhānta é considerado como um tipo de corrente tântrica “da mão direita”, que respeita as normas sociais e os Vedas, embora lhes adicione uma nova doutrina e novas práticas espirituais e religiosas. Seus praticantes não precisam se afastar da sociedade nem se tornar ascetas, podem ter uma vida social comum e, ao mesmo tempo, devem se dedicar ao estudo e à prática recomendada, para atingir a libertação espiritual.

Nessa corrente, Śiva é considerado como a realidade suprema. Ele é considerado como sem início, sem causa, sem defeitos, capaz de fazer tudo, conhecedor de tudo. Ele é quem liberta o ser vivo individual (jīva) daquilo que o prende neste mundo. 

Assim como um jarro de argila tem uma causa primordial (o oleiro), uma causa instrumental (a roda e o bastão que dão forma ao jarro) e uma causa material (a argila), da mesma forma o universo tem uma causa primordial (Śiva), uma causa instrumental (Śakti) e uma causa material (Māyā). No entanto, o oleiro não está presente no jarro, mas Śiva, através de seu Poder (Śakti), permeia todo o universo, não estando separado dele. E embora a causa instrumental do jarro de argila seja inconsciente, a Śakti, a Potência, é consciente – não é uma mera energia. 

Śiva é pura consciência; māyā é matéria inconsciente (neste sistema filosófico); Śakti é aquela que permite a Śiva atuar e é o intermediário entre a consciência pura e a matéria. Porém, existem vários outros níveis a serem considerados. A ontologia do Śiva Siddhānta é extremamente complexa. O Sāṅkhya havia decomposto a realidade em 25 componentes ou essências (tattvas). O Śaiva Siddhānta adota essas 25 categorias (com uma interpretação um pouco diferente, para algumas) e adiciona outras onze, totalizando 36 tattvas, além de um Absoluto que está além de todos eles. 

Brahman, o Ser Absoluto, é denominado Parama-Śiva (o Śiva supremo), ou Para-Śiva (o Śiva primordial), que é transcendente, que não atua (niṣkriya), não tem qualidades (nirguṇa), não se transforma (niṣpanda), está além do pensamento (amanaska), é indivisível (niṣkalā). Não tem forma e não pode ser representado. Ele é a consciência primordial (parāsaṁvit) e corresponde a sat-cit-ānanda (realidade, consciência e beatitude) do Vedānta.

Em seguida, há cinco categorias que são chamadas coletivamente de śuddha-tattvas, as essências puras. 

(1) Śiva-tattva (que não é Parama-Śiva) é a consciência (cit), a iluminação (prakāśa) e o som transcendente (parā-śabda). Ele é a origem de tudo, é o Governante supremo (Parameśvara). Ele é o Absoluto qualificado (saguṇa-Brahman ou saguṇa-Śiva), apresentando-se sob a forma do som transcendente (śabda-Brahman). 

(2) Śakti-tattva contém a essência da consciência (cid-rūpiṇī) e da beatitude (ānanda); é a experiência (vimarśa) que corresponde à iluminação de Śiva-tattva; ela manifesta e presencia o som transcendente (śabda) no nível de contemplação (paśyantī). 

Esses dois tattvas superiores não são independentes; eles são como as duas metades dentro de um grão-de-bico, formando uma unidade. São dois modos diferentes de ver uma totalidade. O som transcendente é também chamado de vibração ou pulsação (spanda), que está presente nestes níveis da realidade e que permite o acesso ao Absoluto. 

(3) Sadāśiva, o eternamente bondoso, manifesta o poder da vontade (icchā-śakti). Na mitologia hindu, Sadāśiva é representado com cinco cabeças, para indicar suas cinco funções cósmicas (pañcakṛtya). Ele absorve as funções da Trimūrti (onde Brahmā é o poder criador, Viṣṇu o poder de manutenção e Śiva o poder de destruição do universo), adicionando-lhes outras duas: a de ilusão, que prende as pessoas ao mundo e ao ciclo de renascimentos; e a de libertação. No aspecto de manifestação da consciência, Sadāśiva corresponde à percepção do eu, ahaṁ – EU sou. 

(4) Īśvara, o soberano, manifesta o poder da sabedoria (jñāna-śakti). No aspecto de manifestação da consciência, ele corresponde à percepção do não-eu, idam (isto ou aquilo). 

(5) Śuddhavidyā, a sabedoria pura, também chamada de sadvidyā (sabedoria autêntica), que corresponde ao poder de atividade (kriyā-śakti). No aspecto de manifestação da consciência, ela corresponde à percepção da dualidade, eu-isto (ahaṁ-idam). 

As sete categorias seguintes são chamadas, coletivamente, de śuddhāśuddha tattvas, por terem ao mesmo tempo aspectos puros (śuddha) e impuros (aśuddha). 

(6) Māyā, a magia, manifesta o poder de encobrir e limitar a realidade única, produzindo a dualidade, a pluralidade e as diferenças. A partir dela, surge o universo em seu nível físico. Māyā é dotada de cinco limitadores ou envoltórios, que são os cinco tattvas seguintes:

(7) Kāla, o tempo.

(8) Niyati, a ordenação ou destino.

(9) Rāga, o sentimento.

(10) Vidyā, o conhecimento.

(11) Kalā, as ações ou poderes.

(12) Puruṣa, a essência do ser humano, é a última categoria pura-impura (śuddhāśuddha). No Sāṅkhya, Puruṣa é a consciência pura, perfeita, que deve ser atingida e separada da Natureza (Prakṛti). No Śaiva Siddhānta, é o eu limitado, é o ser vivo, jīva, que tem um corpo. 

Todos os 24 tattvas seguintes são equivalentes aos do Sāṅkhya, com algumas mudanças de interpretação. Eles são designados, coletivamente, de aśuddha tattvas, ou essências impuras. O primeiro é a natureza, Prakṛti, seguida pelos três órgãos internos (antaḥkaraṇa), os cinco órgãos sensoriais (jñāna-indriyas), os cinco órgãos de ação (karma-indriyas), os cinco elementos sutis (tanmātras) e os cinco elementos grosseiros (mahābhutas). 

No Advaita Vedānta, māyā é a ilusão e só existe uma realidade, Brahman. No Śaiva Siddhānta, o universo não é ilusório, ele é real, porém sua verdadeira natureza está oculta. 

Śiva, sob seu aspecto supremo (Parama-Śiva) é o Ser Absoluto, Brahman. Porém, não é apenas isso, pois ele tem também o aspecto do ser divino que é o guru que conduz seus devotos e que produz a libertação espiritual. O Śaiva Siddhānta utiliza uma terminologia semelhante à da corrente Pāśupata, considerando que Śiva é o senhor (pati) e que as pessoas que ainda não estão libertas são os animais (paśu). No estado de aprisionamento, o paśu tem sua consciência voltada para o universo e isso produz suas ações e renascimentos. No estado liberto, sua consciência está voltada para Śiva. Porém, a filosofia Śaiva Siddhānta não é monista: a consciência humana é distinta da consciência absoluta (Śiva), embora sejam semelhantes. Assim, a individualidade se mantém, mesmo para a pessoa liberta – ela não se dissolve no Ser Absoluto.

As amarras que prendem a pessoa ao saṁsāra são de três tipos: a ignorância, avidyā; as ações e seus efeitos, karman; e a magia do universo, māyā. A ignorância, também chamada de āṇavamala, é a noção errônea de finitude. O eu, que é pura consciência, imagina ser finito e esta confinado ao corpo, com conhecimento e poder limitados. Ele ignora sua verdadeira natureza. Karman é o que prende a consciência a um corpo, é produzido pelas atividades. Não pode ser destruído, precisa amadurecer e produzir seus resultados. Māyā é a causa material do universo, que está sempre presente, mas pode ser ultrapassada. A libertação surge quando a pessoa se desprende da ignorância, deixa de acumular os resíduos de suas ações e eles se esgotam, e se desapega da atração pelo mundo. Com a destruição dos pāśas, o indivíduo se torna igual a Śiva e o contempla constantemente – antes de morrer e após a morte. Mas ele não se dissolve no Ser Absoluto – mantém sua individualidade.

Essa libertação é auxiliada por Īśvara, por isso ele deve ser cultuado. No Śaiva Siddhānta o guru tem também um papel fundamental – como em toda tradição tântrica. O verdadeiro guru é considerado aquele que está na fase final de sua última vida e Śiva está presente dentro dele. O guru concede ao discípulo merecedor a iniciação (dīkṣa) que marca sua transformação; mas o discípulo deve realizar sua caminhada, cumprindo seus deveres (dharma) e realizando práticas diárias ou opcionais prescritas pelas escrituras. 

 

KĀŚMĪRA ŚAIVA (SHIVAÍSMO DA CAXEMIRA) 

A corrente Śaiva Siddhānta se desenvolveu com contribuições tanto do norte quanto do sul do subcontinente indiano, porém se manteve mais forte no sul e foi praticamente substituída, na região norte, por outra corrente: Kāśmīra Śaiva, ou Shivaísmo da Caxemira. Esse nome se refere apenas ao local de origem de sua sistematização filosófica. Assim como no caso do Śaiva Siddhānta, a base do Kāśmīra Śaiva é o conjunto de āgamas, ou seja, escrituras tântricas associadas a Śiva. Os seus textos filosóficos, inspirados nessas escrituras, foram também escritos aproximadamente na mesma época – séculos VIII a XI d.C. Porém, as filosofias das duas correntes são muito diferentes, assim como suas práticas.

O nome “Kāśmīra Śaiva” não designa uma única filosofia e sim um conjunto de visões diferentes, com um certo núcleo comum. As principais vertentes dentro dele são chamadas Kaula, Krama e Trika. As três costumam ser descritas como idealistas e não-dualistas. Todas elas fazem parte do Tantra da mão esquerda, que viola as normas vêdicas e brāhmaṇicas. Delas, vamos apresentar a vertente Trika (a doutrina da triplicidade) pode ser considerada mais moderada, sob o ponto de vista de suas práticas. Ela é também chamada de doutrina do reconhecimento (Pratyabhijñā), por um motivo que ficará claro mais adiante. Seus autores mais influentes foram Somānanda, Utpala e Abhinavagupta. 

Nessa doutrina, a única realidade é Śiva – ou seja, é uma filosofia não-dualista. Śiva é consciência pura, infinita e independente. Ele é eterno e sem forma – ou seja, não devemos confundir o Śiva dessa corrente filosófica com o Śiva mitológico. Como não existe nada além dele, Śiva é ao mesmo tempo o sujeito e o objeto de todas as experiências. O universo está contido na consciência de Śiva; e nossa própria consciência é Śiva. Assim, nós vemos um universo que está dentro de nós mesmos, embora pareça estar fora. Īśvara (que é Śiva) produz a totalidade dos objetos, como se existissem fora, mas que são apenas produtos da própria consciência dotada de vontade, sem nenhum substrato ou causa material. Não existe nada independente de Īśvara, para participar ou cooperar na criação do universo. Todas as coisas são como reflexos em um espelho – sem realidade própria e sem produzir nenhuma modificação no próprio espelho. No entanto, ao contrário do que acontece com o espelho, não existem os objetos externos a ele que produzem essas imagens. 

Pelo seu próprio poder (Śakti) que lhe é inerente, Śiva aparece dentro de si próprio como uma multiplicidade de pessoas e de objetos criados para suas vivências. A única realidade é a consciência, o eu puro e ilimitado, cuja atividade (spanda – vibração) é a causa de todas as distinções aparentes. Śiva, em si mesmo, é uno e imutável – como o espelho da metáfora acima. O seu poder, Śakti, que é não-diferente dele próprio, tem uma infinidade de aspectos. Os cinco poderes mais importantes dela são cit (consciência), ānanda (beatitude ou felicidade perfeita), icchā (vontade), jñāna (conhecimento) e kriyā (atividade, poder criativo). A manifestação desses cinco poderes produz as cinco essências puras (śuddha-tattvas): Śiva-tattva, Śakti-tattva, Sadāśiva, Īśvara e Śuddhavidyā, que são apenas estados ou modificações do ser único, que é o Śiva supremo. A ontologia da filosofia Trika utiliza as 36 categorias do Śaiva Siddhānta, porém com uma outra interpretação, pois só admite uma única realidade. 

A consciência individual (jīva) é idêntica à consciência absoluta (Śiva); portanto, não pode existir uma multiplicidade de consciências. Porém, a consciência individual está associada a um conjunto de visões errôneas (ajñāna, ignorância) que encobrem sua verdadeira natureza. Embora seja a consciência infinita, ela pensa ser finita; embora seja totalmente livre e infinita, ela pensa que está limitada pelo corpo. Ela não percebe que todo o universo é desprovido de realidade independente e só existe em Śiva, e que ela própria é Śiva. Tudo o que é necessário para a libertação é o reconhecimento (pratyabhijñā) da realidade. Trata-se de uma compreensão do real significado de tudo o que está sendo percebido. Aquele que está tendo as vivências e o conteúdo das vivências – tudo é apenas consciência e é Śiva. A consciência individual não precisa se isolar do universo – como no caso do Sāṅkhya – porque o universo está dentro da própria consciência. A consciência individual não precisa se fundir ao Absoluto, porque ela já é esse Absoluto. Basta reconhecer isso e libertar-se da interpretação errônea.

O indivíduo não liberto é como uma pessoa que sofre, com sede, às margens de um rio de águas puras. Seu sofrimento vem apenas da sua incapacidade de reconhecer a água. Não é preciso sair procurando o rio, ele já está lá. 

De certa forma, o sistema Trika ou Pratyabhijñā exige apenas uma mudança de compreensão para atingir a libertação, sendo nesse sentido semelhante ao Advaita Vedānta. No entanto, as práticas envolvidas nessa tradição incluem muito mais do que um tipo de Jñāna-Yoga. Essas práticas se baseiam no próprio conceito de não-dualidade, que exclui a dualidade puro-impuro e, por isso, rejeita as regras vêdicas e brāhmaṇicas do dharma. Assim, dentro da tradição Trika foram desenvolvidos rituais envolvendo carne, bebidas alcoólicas e sexo, além de outras substâncias que são proibidas de acordo com os textos brāhmaṇicos. Esses rituais eram realizados de forma secreta, apenas pelas pessoas que tinham recebido uma iniciação especial. 

Pasupata
Saiva
Kasmira
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