Por Roberto de A. Martins
Sāṅkhya é uma abordagem filosófica indiana que apresenta conceitos fundamentais para a compreensão do Yoga tradicional de Patañjali. No entanto, infelizmente, é pouco conhecido e estudado pelas pessoas que se dedicam ao Yoga. Alguns dos conceitos fundamentais do Sāṅkhya são importantes para compreender alguns aspectos fundamentais do Yoga de Patañjali.
O Sāṅkhya é um dos seis sistemas ortodoxos da filosofia indiana que se desenvolveram aproximadamente 5 ou 6 séculos antes da era cristã.
Esses sistemas são descritos pelos indianos como sendo seis diferentes “visões” (darśana) do pensamento vêdico.
Seus nomes são estes:
Pūrva Mīmāṃsā
Uttara Mīmāṃsā (Vedānta)
Vaiśeṣika
Nyāya
Sāṅkhya
Yoga
Não se deve confundir o sistema Vedānta com os textos Vedānta (Āraṇyaka e Upaniṣad). As Upaniṣads surgiram antes do sistema filosófico do Vedānta, e são respeitadas e citadas também nos outros darśanas.
Os seis darśanas são normalmente apresentados aos pares, que são considerados como complementares:
Pūrva Mīmāṃsā + VedāntaVaiśeṣika + NyāyaSāṅkhya + Yoga
Muitos textos indianos antigos falam sobre a relação entre Sāṅkhya e Yoga, como por exemplo a Bhagavad Gītā:
“Os ignorantes falam sobre Sāṅkhya e Yoga como diferentes, mas o sábio não. Aquele que se aplica de forma adequada a um deles, obtém os resultados de ambos. O estado que é obtido pelos Sāṅkhyans é também atingido pelos Yogins. Os que vêem corretamente percebem que o Sāṅkhya e o Yoga são um.” (Bhagavad Gītā 5.4-5).
O sistema Yoga que está associado ao Sāṅkhya é o Yoga de Patañjali (também chamado de Rāja-Yoga), e não as outras formas ou correntes de Yoga (como o Haṭha-Yoga ou o Bhakti-Yoga). A base teórica do Haṭha-Yoga, por exemplo, é o conhecimento da estrutura energética ou sutil do ser humano, constituída pelos cakras, pelas nāḍis, pelos diversos tipos de prāṇa, kuṇḍalinī, etc., bem como suas correlações cósmicas. Esse conhecimento, que se desenvolveu dentro do Tantra, é completamente distinto da filosofia Sāṅkhya.
Pode-se compreender o Haṭha-Yoga tradicional sem conhecer o Sāṅkhya; mas não se pode compreender o Yoga de Patañjali sem o Sāṅkhya. Da mesma forma, é possível compreender o Yoga de Patañjali sem conhecer cakras, nāḍis, os diversos tipos de prāṇa, kuṇḍalinī, etc.; mas esses conhecimentos são essenciais para compreender o Haṭha-Yoga tradicional.
A palavra sânscrita Sāṅkhya significa, literalmente, número, cálculo, conta, quantidade. Está associada ao verbo sânscrito Saṅkhyā, que significa contar, somar, calcular, enumerar. O sistema filosófico Sāṅkhya tem esse nome por dois motivos:
É uma teoria filosófica sobre o universo e a realidade que enumera detalhadamente todos os princípios fundamentais que existem.
É uma teoria que enfatiza a necessidade de distinguir ou de separar os princípios que são fundamentalmente diferentes (como vamos ver mais adiante).
Um exemplo desse primeiro aspecto do Sāṅkhya é a descrição que essa filosofia faz dos cinco sentidos (jñāna-indriya), dos cinco órgãos de ação (karma-indriya), dos cinco “elementos sutis” (tanmātras) e cinco “elementos grosseiros” (mahābhūtas), associados aos cinco sentidos.
Outras correntes de pensamento indianas também fazem uso dessas classificações, mas elas se originaram e são típicas do Sāṅkhya.
No entanto, Sāṅkhya tem o significado de discernir, separar, distinguir, e este é o sentido mais importante, sob o ponto de vista filosófico.
É impossível apresentar aqui todo o pensamento do Sāṅkhya e sua relação com o Yoga, é claro. Vamos mostrar apenas um desses aspectos, que é central, pois tem relação com a própria essência do Yoga de Patañjali.
O Sāṅkhya ensina a existência de duas realidades eternas: Puruṣa e Prakṛti. Puruṣa (que significa literalmente “homem”) é o centro da consciência. Prakṛti (palavra que significa “a produtora”) é a natureza, fonte de toda existência material e de todo o dinamismo do universo.
O ser humano tem um corpo, constituído por matéria e forças vitais, que pertencem a Prakṛti; mas tem também consciência (Puruṣa), que constitui o núcleo mais interno que pode ser alcançado pela percepção espiritual. Puruṣa é o Eu mais interno, e é eterno (como a Natureza), de acordo com o pensamento Sāṅkhya.
Puruṣa e Prakṛti se opõem e se complementam. Tudo o que existe no universo contém ambos. Prakṛti é eterna, feminina, ativa, não consciente, mutável. Puruṣa é eterno, masculino, passivo, consciente, imutável.
Prakṛti e Puruṣa costumam ser comparados a uma dançarina e ao expectador imóvel que vê sua dança. A dançarina representa o dinamismo da Natureza; o expectador representa a consciência passiva. Porém, para que a comparação fosse perfeita, o expectador (Puruṣa) não poderia ter um corpo, deveria ter apenas consciência; e a dançarina (Prakṛti) não poderia ter consciência, deveria ser apenas um poder cego, inconsciente.
Esses conceitos são fundamentais para se poder compreender uma parte essencial do Yoga de Patañjali. Logo no início do Yoga-Sūtra, ele afirma:
YS I.1 Eis aqui a exposição do Yoga.
2 Yoga é o controle das atividades (vṛtti) da mente.
3 Então o observador (draṣṭṛ) se estabelece em sua própria natureza.
4 Em caso contrário ele adquire a aparência das atividades (vṛtti).
Mais adiante, o Yoga-Sūtra afirma:
YS II.41 A capacidade do Yoga leva à visão do seu próprio Eu (ātman).
A segunda frase reproduzida acima é muito e famosa, e muitas pessoas a sabem de cor, em sânscrito: "yogaś citta-vṛtti-nirodhaḥ". No entanto, poucas pessoas se preocupam em compreender aquilo que vem logo depois. O que é esse "observador" (draṣṭṛ)?
Em certo sentido, o objetivo do Yoga tradicional é o auto-conhecimento, mas não no sentido ocidental dessa expressão. Para entender o que o Yoga de Patañjali entende por auto-conhecimento, é preciso estudar um pouco da filosofia Sāṅkhya, que fornece a base teórica para esse método.
O “eu” (ātman) ou “observador” (draṣṭṛ) ao qual Patañjali se refere é Puruṣa, nosso princípio de consciência.
Todo o dinamismo do universo (e dos seres humanos) vem do princípio feminino Prakṛti, porque o princípio masculino, Puruṣa, é totalmente inativo, passivo. Ele é descrito pelo Sāṅkhya como uma mera testemunha, um observador que não participa das atividades que são realizadas pelas forças da natureza.
Um texto fundamental do Sāṅkhya, chamado Sāṅkhya-Kārikā, afirma:
S-K 19. [...] Puruṣa tem o papel de testemunha; é liberto, é indiferente, percebe mas não age.
De acordo com o Sāṅkhya, nosso corpo, nossas forças vitais e até mesmo nossa mente (manas, ou citta) são simplesmente produtos da natureza (Prakṛti), que possuem um dinamismo próprio (os guṇas) e que funcionam como uma máquina ou como um robô. Nosso eu mais interno e fundamental não é nossa mente: é algo muito diferente e mais profundo. É o observador imóvel que está consciente do funcionamento das atividades mentais. No entanto, não o percebemos, em nosso estado comum. Geralmente, nós nos identificamos com as próprias atividades mentais (citta-vṛtti).
Podemos procurar perceber, na prática do Yoga, a existência de Puruṣa dentro de nós, distinguindo-o de Prakṛti. Isso pode ser feito de diferentes formas, em diferentes níveis, até levar às vivências mais profundas. De acordo com a tradição de Sāṅkhya, quem consegue manter permanentemente a distinção entre Puruṣa e Prakṛti atinge a libertação espiritual.
Há vários outros aspectos importantes, como o conceito dos guṇas (sattva, rajas e tamas). Esses conceitos, originados no Sāṅkhya, são fundamentais para se compreender o próprio funcionamento de algumas das etapas do Yoga de Patañjali. Os dois primeiros membros (aṅgas) do Rāja-Yoga são as proibições (Yama) e as obrigações (Niyama). O objetivo dos Yamas é diminuir as tendências egoístas e violentas (Rajas) da pessoa. Por outro lado, o objetivo dos Niyamas é estimular o surgimento de luz (Sattva) na pessoa. O conhecimento do Sāṅkhya é fundamental, para se captar o significado desses dois membros do Yoga.
Por outro lado, a compreensão do funcionamento dos membros internos do Yoga de Patañjali (inversão dos sentidos, concentração, meditação (dhyāna) e samādhi também exige o conhecimento de outros aspectos do Sāṅkhya. De acordo com essa filosofia, possuímos três órgãos internos (antaḥkaraṇa), que são Buddhi, Ahaṃkāra (individualidade) e Manas ou Citta (mente). Apenas conhecemos, no nosso estado normal, o funcionamento de nossa mente. No entanto, nos estados alterados de consciência induzidos pelas práticas avançadas de Yoga, não é a nossa mente que está funcionando: é a Buddhi.
Buddhi é o órgão que permite o contato com conhecimentos espirituais que não provêm dos sentidos, nem da memória, nem das leituras e estudos; e também é o órgão que serve de intermediário entre Puruṣa e a estrutura mental e física de cada indivíduo. Nas práticas de meditação (dhyāna) e de samādhi do Yoga de Patañjali não utilizamos nossa mente, e sim nossa buddhi.
Sem conhecer essa estrutura interna do ser humano, descrita pela filosofia Sāṅkhya, não podemos compreender o que ocorre durante o processo de meditação (dhyāna) ou no samādhi.
O Sāṅkhya nos ajuda a compreender todos esses aspectos do Yoga tradicional de Patañjali, além de outros que não mencionamos. Trata-se, portanto, de uma abordagem filosófica de grande importância, para as pessoas que querem se aprofundar no conhecimento desse ramo do Yoga.
Se quiserem aprofundar neste estudo leiam meu livro: Roberto de A. Martins - O Yoga Tradicional de Patañjali: o Rāja-Yoga segundo o Yoga-Sūtra e outros textos indianos clássicos (São Paulo: PoloBooks, Shri Yoga Devi, 2015), 185 págs. (Este livro pode ser adquirido aqui na Livraria do site)
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